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A cultura e a comunicação sob a tirania do mercado

Por Márcia Cristina Pimentel * - 24/02/05

Os produtos jornalísticos relacionados aos temas da subjetividade e da vida privada dos indivíduos estão cada vez mais em pauta. Em especial quando o foco recai sobre aqueles que, através de estratégias de comunicação, se transformaram nas ditas "celebridades". Esta tendência à mistura de notícia com entretenimento, assessoria de comunicação com jornalismo, e que acompanha as regras do mercado de consumo, tem se revelado como uma perigosa mordaça ao mundo ético e à diversidade. Tal constatação nos atenta, ainda, para o risco de podermos estar caminhando para uma ditadura estética, expressiva e comunicacional.

Nessa segunda-feira (21/2), embora o país estivesse sofrendo a rebordosa da morte da irmã Dorothy e da eleição de Severino para a câmara federal, a primeira página do jornal carioca 'O Dia' estampava manchete, de meia página, que tratava de mais um capítulo do reality folhetim 'O casamento', protagonizado pelo ator-personagem Ronaldinho.

A grande manchete era só fuxico. Envolvia revelações da última 'ex' do protagonista, além de outras considerações sobre a 'atual', feitas pela modelo que representou o papel de 'a barrada no baile'. A tendência à construção de pautas voltadas à subjetividade ao estilo folhetinesco, contudo, não pode ser creditada apenas ao universo popularesco. A revista 'Você S/A' está aí para mostrar que empresários e altos executivos também querem se transformar em personagens do mundo midiático, a fórmula contemporânea de promoção pessoal mais eficaz.

Toda essa exposição da vida privada e do mundo subjetivo vem sendo impressionantemente acelerada e aprofundada pelo pensamento neoliberal. Cada vez mais, ela parece contaminar com a estética do folhetim as representações - e não só as de massa - que vêm sendo submetidas à lógica mercadológica, muito embora o atual estágio de organização da sociedade e do mundo não prescinda das informações objetivas. Ainda pelos estatutos do neoliberalismo, muito mais vale a projeção pessoal e sua transformação em personagem folhetinesco do que a tentativa de mudar a realidade. Esta é melhor ficar como está.

A modelo que fez o papel de 'a barrada no baile' é mais uma a atestar esta verdade. Apenas dois dias após o enlace matrimonial espetacular de Ronaldinho, o sítio virtual 'Uol' registrava que seu cachê já tinha aumentado em 900%. Isto porque ela foi o pivô da cena que mais rendeu 'babados' e audiência, dentre todas as demais cenas do espetáculo 'O casamento'.

Para garantir a sobrevivência da lei e dos seus paradigmas de representação, paparazzi e jornalistas de plantão se postam dia e noite na sombra das personagens 'reais', a fim de continuar a trama dos seus diversos reality folhetins. É necessário mostrar que a ascensão social é possível, desde que o indivíduo aceite a lógica do fetiche, pois ele é uma das maneiras mais eficientes de agregar valor a qualquer mercadoria, inclusive a humana. Pois o que me parece acontecer é que essa lógica educa para a questão de que, hoje, não basta apenas alienar a força de trabalho, mas a si próprio.

Os autores da nova tendência folhetinesca, na busca de informações sobre suas personagens-fetiche, arriscam-se, inclusive, a levar socos de namorados raivosos, o que os leva a evocar a liberdade de imprensa, com o irrestrito apoio do veículo para o qual trabalha. Inclusive o das entidades de classe, sempre a defenderem o direito ao trabalho, ainda que o código de ética da categoria seja claro quanto à conduta de "respeitar o direito de privacidade do cidadão". A revista 'Contigo' tem, inclusive, chamado esta busca pelo desvelamento do mundo privado das "celebridades" de "jornalismo investigativo". Jornalistas conhecidos do grande público também dizem que esse tipo de jornalismo é "muito natural", pois é isso "o que o povo quer", é uma "questão de mercado".

A crise ética

O jornalista e professor Bernardo Kucinski, em seus 'Ensaios sobre o colapso da razão ética', observa a atual tendência de não-aceitação de um código de ética pela categoria jornalística e veículos de comunicação por ele contrariar as regras mercadológicas e os valores do individualismo, tão marcantes na contemporaneidade. Quando se trata da mídia gerar matérias com informações objetivas, há ainda de se lembrar outra questão levantada por Kuncinski; a de que a corrupção se tornou numa "prática sedutora na indústria da comunicação" pelo fato dela combinar "o poder de influenciar politicamente a opinião pública com o poder econômico".

Ao final de tudo, o que nos parece efetivamente acontecer, é que a hegemonia do pensamento neoliberal não tem permitido, na práxis, outras manifestações da representação que não sejam as suas, sob a pena de se ser expurgado e massacrado pelo mercado. Isto vale tanto para veículos como para profissionais. Na verdade, a regra da submissão ao mercado, não submete apenas o econômico em função da necessidade de sobrevivência. Submete a própria existência. Tudo e todos ficam condenados à lógica do seu pensamento mercadológico, esvaziando e anulando, inclusive, as individualidades, as expressões e as outras formas de representação.

Da mesma maneira que o jornalismo crítico, o teatro também se vê cada vez mais inserido numa camisa de forças, em função da sua fusão com o entretenimento e consumo, esvaziando, de forma preocupante, a essência desta arte. Tal como vem acontecendo com o jornalista, o ator também vem abandonando todos os parâmetros éticos e utópicos, inerentes a qualquer projeto estético e poético, por contingência da sobrevivência e das leis do mercado.

Luiz Carlos Moreira, um dos integrantes do movimento paulista 'Arte contra a Barbárie', em um de seus escritos, mostra bem o que vem acontecendo com o ator de teatro. Este, agora, tem que saber dançar, cantar, sapatear, rodopiar, assoviar, fazer drama, tragédia, comédia, enfim, tem que traçar o que vier pela frente para garantir o pagamento do aluguel no mês seguinte. Para sobreviver, ele hoje pode se inserir "num pacote que vem da Broadway, amanhã numa peça que prega a revolução comunista", e depois de amanhã "num comercial do banco Itaú". É um 'artista' sem nenhuma arte, pois não tem projeto estético. Ele é apenas um profissional.

No abandono da essência de seu ofício, os atores, tal como os jornalistas, parecem se conformar à função do técnico. Transformaram-se naqueles profissionais que sabem reproduzir o projeto de qualquer engenharia cultural, de comunicação ou entretenimento, estejam tais projetos coadunados com a sua visão de mundo, ou não. Os sujeitos do mercado e aqueles cooptam com suas proposições, parecem, assim, esvaziar, deteriorar, destruir todos os sonhos e utopias que não se vinculem ao consumo, à casa própria, à sobrevivência. Ao impor a sua lógica, impõe junto uma ditadura expressiva, estética e representacional, ou melhor, transforma o campo da cultura e da comunicação em mera reprodução de suas forças. E os indivíduos em meros instrumentos dessa reprodução.

* Márcia Cristina Pimentel é jornalista, atriz e escreve para o site La Insígnia.

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Como não cometer os mesmo e velhos erros?

Por Márcio Pochmann * – 21/02/05

O novo governo do Uruguai nem tomou posse ainda, mas já produziu matéria de fazer inveja a outros governantes do continente latino-americano. Desde a sua campanha eleitoral, em 2004, o então candidato Tabaré Vasquéz notabilizou-se por buscar a aglutinação de diferentes segmentos sociais em torno da construção de uma agenda voltada para o desenvolvimento social e econômico do Uruguai.

Para isso, assumiu como ponta de lança de um novo horizonte nacional, a consideração e recomposição dos segmentos sociais mais diretamente afetados pelo vendaval do neoliberalismo. Imediatamente após a eleição, já em plena etapa de formação da equipe de governo, o presidente eleito inovou novamente ao antecipar a agenda do desenvolvimento, como forma de aprofundar o diagnóstico e oferecer alternativas viáveis de execução com distintos integrantes da sociedade.

Muitas oficinas de discussão têm sido realizadas nas mais diferentes áreas. Nos dias 31 de janeiro e 1 de fevereiro do corrente ano, por exemplo, ocorreu uma dessas oficinas voltadas para o redimensionamento do projeto de desenvolvimento nacional, a partir das análises das experiências latino-americanas de adoção de políticas de emergência social.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (ONU), convocado pela senadora e também indicada para o novo Ministério do Desenvolvimento Social Marina Arismendi, organizou um excelente encontro internacional com antigos e atuais gestores de programas sociais de emergência adotados em países como Argentina, Brasil, Chile, Cuba e México. Durante dois dias, diversos membros da equipe do novo governo do Uruguai (ministros, secretários executivos e técnicos), que somente tomam posse no dia 1 de março próximo, tiveram a oportunidade de fazer uma verdadeira sabatina a respeito da estratégia, execução e conteúdo dos diferentes programas de emergência social adotados nos países latino-americanos. Diante da diversidade da materialidade das políticas sociais, em que uma parte importante dos países latino-americanos segue a norma neoliberal das agências multilaterais de complementar renda, há que se separar o joio do trigo. Como se sabe, a década de 1990 foi, sobretudo, o período das reformas neoliberais, cujos resultados em termos sociais, especialmente no emprego foi uma catástrofe, mesmo em países com indicadores positivos de crescimento econômico.

Com a insustentabilidade dos regimes democráticos frente às políticas de liberalização comercial, produtiva, financeira, tecnológica e laboral, que levam ao aprofundamento da polarização social entre rico e pobre, com forte enxugamento das classes médias, ganhou ênfase a formação de uma nova aliança política entre os segmentos muito ricos e os muitos pobres. Na maior parte das vezes, a nova maioria vencedora tratou de compatibilizar programas de racionalização de gastos nas políticas universais como educação, saúde, habitação e transporte, geralmente defendidas pelos segmentos organizados da sociedade, como forma de viabilizar tanto a renda mínima a ganhadores do circuito da financeirização da riqueza, por intermédio das transferências financeiras, com altas taxas de juros, como a renda mínima a segmentos muito pauperizados. Sem emprego e perspectiva de mobilidade social, salvo aquela oferecida pela ilegalidade da prostituição, da criminalidade, tráfico humano e de drogas, certas agências multilaterais apóiam programas de complementação condicionada de renda.

De acordo com os participantes da oficina realizada no Uruguai, os programas de transferência de renda variam entre 1% (México) a 0,3% (Brasil) do Produto Interno Bruto. Com distintas ações e funções há detalhes importantes a serem feitas entre os programas do México e Chile e os da Argentina e Brasil, por exemplo. No primeiro grupo de países, os programas encontram-se mais próximos da ideologia neoliberal da focalização de recursos, enquanto no segundo, os programas estão um pouco mais distantes disso.

Diferenças mesmo em termos de objetivos voltados para a emancipação social e política, em que a política econômica transforma-se em parte integrante das ações integradas e matriciais de operacionalidade, foram localizadas nos programas de Cuba e da Prefeitura de São Paulo (2001 a 2004). Em síntese se tratam de ações governamentais que envolvem a inversão de prioridade, com o gasto público a serviço do avanço da infra-estrutura física no território em que se concentra o conjunto da população mais pobre. Por não se referirem a programas direcionados de pobre para pobre - que se distanciam da inclusão social -, os resultados apresentados em Cuba e no município de São Paulo convergiram com a perspectiva efetiva de enfrentamento da exclusão social em novas bases. Nesse mesmo sentido parece seguir as ações do governo de Chávez na Venezuela, com amplas programas matriciais nas áreas da saúde, educação, infra-estrutura, emprego, entre outras. Bem, mas isso é algo para ser tratado em outra oportunidade.

Em resumo, as informações aqui apresentadas apenas indicam a correta preocupação do novo governo de Uruguai em não procurar cometer os mesmo e velhos erros, que tradicionalmente acompanham as gestões públicas na área social, especialmente aquelas oriundas da linha política de centro-esquerda. O governo Lula, por exemplo, parece ter aprendido pouco sobre isso, uma vez que deixou em segundo plano o aprendizado acumulado desde 1982 nas experiências municipais e estaduais exitosas na área social. Ao contrário da área econômica, que tem equipe e coordenação, com metas e cronogramas, a área social segue o jogo incerto e errôneo da ausência de coordenação do conjunto da área social. Sem diagnóstico comum, opera, na maioria das vezes, sem metas e cronogramas, em meio à lógica da competição interburocrática, em que a soma das partes não resulta necessariamente num todo maior.

Conforme o governo uruguaio, o novo ministério do desenvolvimento social não representa mais um ministério, mas sim a institucionalidade governamental necessária para a integração e matricialidade dos programas de emergência social no conjunto do governo. Para atender aos segmentos sociais desfalecidos pela política neoliberal, há uma emergência da ação pública que, ao reconhecer a sua existência, buscará oferecer o atendimento cidadão de curto e longo prazos. Este primeiro momento da política pública deve contemplar imediatamente a semente da emancipação social, política e econômica. Ainda conforme a futura ministra do Desenvolvimento Social, os excluídos devem ser também os protagonistas das políticas sociais, não meros repositórios passivos, quando não clientelas do dependentismo político e paternalista, a que têm sido continuamente submetidos por políticas sociais estigmatizantes, conduzidas pelos princípios individualistas do neoliberalismo predominante na América Latina.

É nesse contexto que o novo governo do Uruguai poderá deixar de cometer velhos erros. Ao longo deste ano, o acompanhamento de sua performance dirá o quanto isso deixou de se uma retórica para se transformar em realidade efetiva.

* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.

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Eleições sobre cadáveres

Por Augusto Zamora R* - 14/02/05

Relevantes meios de comunicação e políticos não duvidaram em qualificar o que aconteceu no passado dia 30 no Iraque como "as primeiras eleições democráticas" da sua história. A afirmação é um alarde de cinismo ou de cegueira porque ninguém - que acredite numa verdadeira democracia - pode aceitar, como tal, a farsa eleitoral organizada pelos EUA. Não o pode chamar, sem deformar a tal ponto os fundamentos da democracia que, então, pode chamar-se isso a qualquer arremedo de consulta popular, onde o que importa não é o país, mas o poder.

O Iraque, há que recordá-lo, é um país ocupado por 200 mil soldados estrangeiros e em guerra. Um Estado soberano invadido em 2003, em violação das leis mais fundamentais do Direito Internacional e onde, diariamente, são assassinados, torturados e vilipendiados centenas de cidadãos, sem que haja lei ou autoridade que zele pelos seus direitos. Um país que vê destruídas cidades, povoações e bairros pelas forças invasoras, no meio do silêncio cúmplice de tantos governos, mais preocupados em agradar à potência ocupante que em deter a destruição do Iraque e os crimes que ali se cometem diariamente.

As eleições, além disso, estavam infestadas de arbitrariedades que, não fossem os Estados Unidos o organizador – ou se o seu promotor tivesse sido um país adverso ao Ocidente – a desclassificação das mesmas teria sido generalizada. Realizaram-se, em primeiro lugar, em total ausência de liberdade, pois nenhuma pessoa honesta pode acreditar que um país agredido e ocupado pode exercer livremente o seu direito à autodeterminação. As eleições em Timor Leste realizaram-se em 2001 sob a supervisão da ONU, dois anos depois de o exército indonésio abandonar o país. Nunca ninguém pensou em realizar as eleições enquanto Timor permanecia debaixo da ocupação de tropas estrangeiras.

Em segundo lugar, não existia um recenseamento fiável, nem se tinham, minimamente, definido os votantes. Esta carência essencial permitirá aos EUA adulterar os níveis de participação e dirigir os votos para os seus candidatos protegidos, de forma que ganhe quem menos o odiar. Também não havia uma autoridade eleitoral, legítima e independente, que zelasse pela lisura do escrutínio, nem que garantisse as liberdades eleitorais mínimas, como exige o jogo democrático. Os partidos que se opõem à ocupação foram ilegalizados ou integraram-se na resistência. Desde a convocação das eleições, optaram por retirar-se 53 partidos dos 84 que se apresentaram inicialmente, pela precariedade das mesmas e ausência de garantias. A farsa era tão absurda que até podiam ter votado 150 mil israelenses de origem iraquiana.

Na conferência de Sharm el Sheij, no Egito, a França apresentou uma proposta, não aceita, com três condições para superar o desastre no Iraque: a participação de todas as forças iraquianas, incluída a resistência, em qualquer proposta de solução; passar o controle do Iraque às Nações Unidas e fixar uma data de retirada das tropas estrangeiras. A recusa desta proposta revela a intenção de manter, sine die, a ocupação do Iraque, o que é o mesmo que dizer a de prolongar a guerra e a destruição e, naturalmente, a de manter o país dominado. Não se gastaram 300 mil milhões de dólares para devolver o Iraque aos iraquianos.

Dar por boas eleições realizadas em tais condições não só aumentará a confrontação no Iraque como implicará legitimar as guerras de agressão e validar os crimes internacionais. Deitaram por terra não só a Carta das Nações Unidas, como também o Tribunal Penal Internacional, pois carecerá de sentido defender uma ordem jurídica mundial e um tribunal internacional quando basta uma farsa eleitoral para limpar os crimes mais abomináveis.

Os EUA, que inventaram a democracia das bananas no Caribe, tentam impor no Iraque uma democracia de cadáveres. Invade o país, coloca um governo títere, mata, encarcera e tortura os opositores e convoca eleições sem garantias, nas quais apenas participam os seus. Com o arremedo eleitoral, a ocupação e a guerra transformam-se em politicamente corretas e Bush poderá proclamar, sobre um país devastado, que os Estados Unidos cumpriram a sua missão civilizadora. O modelo não é novo. Na América Latina foi utilizado ao longo de décadas. E ainda se estão a contar os cadáveres.

* Augusto Zamora R. é professor de Direito Internacional Público e Relações Internacionais na Universidade Autônoma de Madrid.

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Reforma Política, tópicos centrais

Por Antônio Augusto de Queiroz * - 13/02/05

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Reinventando a esquerda em Porto Alegre

Por Francisco Teixeira * – 03/02/05

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Fórum Social na Venezuela e Chávez já despertam oposição

Por Marco A. Weissheimer* - 03/02/05

Porto Alegre - Encerrada a quinta edição do Fórum Social Mundial, a passagem do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, começa a ser transformada em motivo de polêmica. O apoio entusiasmado que Chávez recebeu em Porto Alegre e a decisão do Conselho Hemisférico das Américas de realizar o fórum continental, em 2006, em Caracas, despertaram reações entre integrantes do Conselho Internacional do FSM e na mídia da capital gaúcha. Entre os incomodados do CI estão Oded Grajew e Francisco Whitaker, que não mostraram muita simpatia pela idéia. Em declarações ao jornal Zero Hora, Grajew disse desconhecer a proposta de levar o FSM para Caracas: "Podem fazer um Fórum na Venezuela, mas se não passar pelo Conselho Internacional não é um Fórum Mundial", comentou. Na mesma linha, Whitaker acrescentou que "nada impede que apareçam outras alternativas".

Whitaker chegou a fazer um comentário irônico sobre as declarações do diretor do Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais (Ibase), Cândido Grzybowski, que, durante a conferência de Chávez no domingo, anunciou que o Fórum Social das Américas seria realizado mesmo na Venezuela. Segundo ZH, Whitaker insinuou que Cândido se emocionou e falou demais. Essa briga pela imprensa deve ganhar contornos mais nítidos na próxima reunião do Conselho Internacional do FSM, que será realizada entre os dias 30 de março e 1° de abril, em Amsterdã, Holanda. O CI já decidiu que a edição de 2006 do FSM será regionalizada, sendo realizada simultaneamente na Ásia, na África e nas Américas. Também está definido que o Fórum de 2007 irá para a África. O Comitê Africano do FSM já elegeu Marrocos como seu candidato para sediar o evento.

A proposta de Chávez de que o Fórum Social Mundial deve ter uma agenda política mais ofensiva não agrada muito a Grajew e Whitaker, que temem que o líder venezuelano acabe se tornando uma liderança importante entre os participantes do processo FSM, o que, na prática, já começou a acontecer em Porto Alegre. Atenta à proposta de uma agenda política ofensiva, defendida por Chávez, a RBS, principal grupo de mídia do Sul do país, iniciou um ataque à idéia. Esse ataque veio a partir de dois flancos que tentam, de forma articulada, desconstituir a figura de Chávez. O primeiro diz respeito às propostas de Chávez (ao discurso antiimperialista feito por ele no Gigantinho); o segundo concentra-se no tamanho da comitiva que o presidente venezuelano levou a Porto Alegre. Os dois temas foram temas de um editorial e de um comentário na televisão nesta terça-feira (1°).

Chávez está na contramão do mundo desenvolvido, diz ZH
Em um editorial intitulado "O norte de Chávez", Zero Hora comenta, com preocupação, a passagem do venezuelano pelo FSM, dizendo que ele está "na contramão do mundo desenvolvido e tem "identidade com experiências estatizantes fracassadas do passado". O editorial identifica assim a agenda proposta por Chávez: "nacionalismo exacerbado, repúdio intransigente à privatização de serviços públicos, onipresença do Estado na vida dos cidadãos e controle dos meios de comunicação". E lembra a tentativa de golpe que Chávez liderou contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em 1998, e as intervenções na economia que geraram "o descontentamento das elites empresariais venezuelanas". Reconhecendo que Chávez desbancou Lula da condição de "ídolo das esquerdas" no FSM, o texto defende que o brasileiro é uma liderança mais sensata e confiável.

Além das acusações de autoritarismo e anacronismo, o jornal da RBS levanta outra pauta para bater em Chávez: a comitiva de mais de 400 pessoas que o líder venezuelano levou a Porto Alegre. Em uma nota intitulada "Excessos presidenciais", a colunista política Rosane de Oliveira comenta: "o tamanho da comitiva, a obsessão com a segurança e as demonstrações de poder causaram espécie em quem cruzou com Chávez sem ser na condição de admirador". Na RBS TV, o comentarista Lasier Martins foi mais direto dizendo não ser possível que o Fórum Social Mundial vá para um país cujo presidente viaja com uma comitiva deste tamanho. Afirmando que a Venezuela "continua sendo um país dividido entre apoiadores e opositores do presidente, permanentemente à beira da instabilidade e da luta de classes", o editorial de ZH resume do seguinte modo o desconforto da RBS com Chávez: "será este o rumo que os povos latino-americanos almejam?".

As idéias incômodas de Chávez
A ofensividade política do discurso feito por Chávez em Porto Alegre e a grande receptividade que teve entre os participantes do FSM 2005 ajudam a entender essa reação: O líder venezuelano assumiu-se como um revolucionário, defensor do socialismo com democracia e inimigo do imperialismo norte- americano. Algumas passagens da conferência de Chávez no Gigantinho falam por si. "Há poderosos do mundo, controlando privadamente países inteiros. Aí está a raiz da fome e da violência, Nós somos companheiros dessa luta, iniciada no Fórum Social Mundial". Ou ainda: "Sou um homem comprometido com um mundo melhor e possível, sou um militante revolucionário. Não há outro caminho que não a revolução". E sobre a luta dos sem-terra no Brasil: "o MST tem sido um exemplo para todos os trabalhadores deste continente".

As referências apontadas por Chávez para dizer a que linhagem de políticos pertence devem ter arrepiado o cabelo de muita gente. "Sim, amigo Ramonet, posso ser um dirigente de um novo tipo. Mas me apóio em dirigentes de velho tipo. Como Cristo, que foi o maior líder antiimperialista da História. Velho tipo também como Bolívar. Como Che Guevara, como o general Torrrijos, no Panamá, ou Velasco Alvarado, no Peru. Como Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. E como aquele barbudo, de Cuba. De velhos tipos e "tipas", como aquela que libertou o Libertador, a mulher por quem Simon Bolívar se apaixonou perdidamente, Manuela Saenz, que deixou seu marido. 'Me vou com este homem, me vou com o furacão', disse ela na ocasião". O furacão Chávez passou pelo Fórum Social deixando um rastro de entusiasmo, admiradores e adversários.

* Marco A. Weissheimer, jornalista e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), é correspondente da Agência Carta Maior em Porto Alegre.

 

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O fórum concreto e o fórum abstrato

Por Luis Fernando Veríssimo - 27/01/05

O Fórum Social Mundial de Porto Alegre começou como uma paródia birrenta da reunião dos ricos e poderosos em Davos. Uma malcriação, uma inconseqüência de crianças. Pelo menos foi assim que a nossa grande imprensa o viu, no início. Lembro do próprio ombudsman da Folha de S. Paulo estranhando o desdém com que o jornal tratava o Fórum, apesar das questões e dos nomes importantes trazidos a Porto Alegre já nas suas primeiras edições. O pouco espaço dado ao evento na imprensa nacional se concentrava no folclórico e no espetaculoso - enfim, nas criancices. A repercussão internacional do Fórum e a sua própria expansão de ano para ano, e a crescente evidência de que a saúde e a sanidade do planeta dependem de se encontrar alternativas para o conchavo de Davos que certamente não sairão de Davos, acabaram aos poucos com o desprezo da grande mídia. Que continua neoliberal de coração, mas, ultimamente, disposta a examinar opções. Uma extensa cobertura jornalística do atual Fórum começou antes mesmo do Fórum. Os maiores jornais nacionais estão dedicando páginas inteiras ao Fórum, diariamente. Inclusive a Folha. Nunca "inconseqüentes" tiveram tanta atenção.

Mas persiste a idéia de que em Davos se reúne gente grande e aqui menores chorões. Lá pessoas sérias tratando da realidade do mundo, aqui idealistas ingênuos e bagunceiros atrás de utopias ultrapassadas ou do caos. Lá questões concretas, aqui abstrações sortidas levando a nada. Mas sabe qual vai ser o assunto dominante nos escaninhos de Davos, mesmo que não conste dos debates oficiais? O déficit americano agravado pela guerra e o efeito arrasador do seu financiamento sobre as economias e o equilíbrio cambial de todo o mundo. Ou sobre o futuro imediato de um capitalismo refém da mais etérea abstração de todas, a do custo arbitrário de um dinheiro que nunca desce à terra. Enquant o isto, em Porto Alegre se estará discutindo, entre algumas criancices, o uso do chão, a boa manutenção do planeta, a preservação da água e a justa distribuição do pão. E a realidade mais concreta de todas: a vida humana, como protegê-la e como dignificá-la. Porto Alegre, dez a zero.

* Luis Fernando Veríssimo é jornalista, escritor e cronista. Escreve artigos em vários jornais do país. Este artigo foi publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 27 de janeiro de 2005.

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