Este artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo esta necessariamente a opinião da diretoria da Fenajufe
Chega a hora de um balanço, ainda que provisório e parcial, depois de cinco dias de protestos, exigências, proposições, um certo tipo de performance coletiva, meio catarse, meio carnaval. Carnaval no sentido histórico e medieval do termo: um momento de subversão da ordem, um parênteses no tempo, um sentimento geral de liberdade, solidariedade e companheirismo. Além, é claro, de muito, muito calor.
Um balanço pronto e acabado do FSM é simplesmente impossível, cabe apenas um balanço de uma temática – um espaço, no jargão do FSM. Nos coube os debates sobre uma “Nova Ordem Mundial, +democrática e +solidária”. E isto já não é de forma alguma pouco. Havia um pouco de tudo, uma certa babel, unificada por uma frase que teimava em soar na minha cabeça: les dannés de la Terre. Da Internacional – redescoberta no estádio Gigantinho, na espera de Hugo Chávez – e no título fundador Frantz Fanon. Estavam lá todos aqueles que haviam sido “deserdados”, abandonados e esquecidos pela admirável nova ordem mundial proclamada por Bush (pai) após a invasão do Iraque em 1991.
As promessas, reafirmadas por Clinton, Blair, Chirac e companhia, a cada reunião do G-7, do FMI ou do Banco Mundial – consagradas nas Metas do Milênio da ONU – não se cumpriram. Nada foi feito, entre 1991 e 2005, para a implantação de termos capazes de substituir o mote globalizado de Free Trade por Fair Trade. O próprio representante do Banco Mundial reafirmou a importância do Livre-Comércio, declarando no mesmo fôlego não saber o que seria um Comércio Justo (Fair Trade).
O Protocolo de Quioto, a mais importante conseqüência da Conferência do Rio, foi duramente sabotado pelo maior poluidor mundial. O combate à aids, flagelo na África, permanece apenas no plano discursivo, da mesma forma que a renegociação ou cancelamento da dívida de países pobres. A nova guerra – agora contra o terrorismo internacional – consome imensos recursos mundiais, causa o maior déficit da história da América – déficit “gêmeos” fiscal+comercial – drenando recursos da periferia do planeta para financiar a guerra no Afeganistão, Iraque, Coréia ( paz armada ou guerra contida? ) e muitos outros pontos do planeta.
Em face a uma guerra bloqueada pelo impasse no Iraque, os EUA já anunciam a sua intenção de estender sua ação contra o Irã. A secretária de Estado dos EUA, “Condi” Rice, anuncia como intoleráveis os regimes de Cuba, Belarus, Zimbabue e Venezuela, como se Washington fosse um dos grandes eleitores da cúria papal, em plena Idade Média. Não adianta a vontade do povo – expressa algumas dezenas de vezes de forma livre e sob observação mundial – na Venezuela: Chávez é um tirano e deve ser afastado. Um tirano que ganha eleições, que mantém uma imprensa livre – mesmo quando esta imprensa conspira e trama com interesses estrangeiros e antipopulares – e implementa amplos programas sociais de alfabetização, moradia popular e reforma agrária.
Outros “deserdados” da Terra estavam em Porto Alegre: a subcasta dos dalits, da Índia; os guerrilheiros-poetas da Frente Polisário do Saara Ocidental; a resistência intelectual de Porto Rico, na luta de afirmação de sua identidade latino-americana; o movimento indígena Pachakutik, do Equador; a via campesina dos cocaleros – note bene, não são narcos! – e o “Movimiento Contra la Impunidad”, da Bolívia e tantos outros… Todos buscavam aqui em Porto Alegre uma caixa de ressonância, tambor ou clarín, para sua causa.
Lá estavam também inúmeras organizações do “Norte”, europeus em sua maioria, cuja a principal preocupação era a implantação do Parlamento Mundial – “Aqui e Agora”, dizia o cartaz! – ou a democratização da ONU. Uma unanimidade contra a globalização perversa e o unilateralismo de Bush, que se partia quando começavam os debates sobre o que seria uma “Ordem Mundial +democrática e +justa”.
Para uns tratava-se de criar, aqui em Porto Alegre, o novo parlamento mundial; para outros a reforma da ONU – não a reforma do Conselho de Segurança, como alguns países exigem – mas, uma reforma radical, prevendo, inclusive, o abandono de Nova York, o fim do direito de veto, a imposição das decisões da Assembléia Geral como norma jurídica e – grande ponto de debate – a inclusão de ONGs não vinculadas aos governos. Para estes havia mesmo uma clara desconfiança contra governos e partidos, construindo um imaginário de ONGs mais legítimas que os processos políticos clássicos. Estes, de certo modo, confluem – lá no final do trajeto – com uma agenda neoliberal propositiva de um Estado-Mínimo.
Contudo, desta feita, sob o calor e alegria de Porto Alegre, a tendência central escapou aos defensores da antipolitíca. A maioria parecia ciente que o Estado não é um inimigo, ao menos quando o Estado é popular e democrático. Como salvar o povo sarauí do Saara Ocidental do genocídio, sem a construção de um Estado Nacional sarauí? Como estabelecer a paz na Palestina sem a criação de um Estado Nacional? As exigências do movimento de educação do Paraguai impõe uma agenda ao Estado, que não pode ser substituído por ONGs… Da mesma forma, o Movimento contra a Impunidade dos crimes de Sanchez de Losada, na Bolívia, exige que o poder judiciário de La Paz pronuncie os culpados… O Estado só é inimigo quando é antipovo! Para ser este o grande lema que emerge das margens do Guaíba.
As fantasias altermundialistas de figuras como Tony Negri e outros, de um Império sem centro ou direção única e da possibilidade de mudar o mundo sem tomar o poder e desprezando o Estado, foram objeto de duras críticas. Teivo Teivainen, da Attac, resumiu a nova politização do FSM: “Não é possível mudar o mundo sem tomar o poder… e não se toma o poder sem tomar o Estado”.
A apoteose de Chávez, no Gigantinho, é a prova concreta que o público lá reunido acreditava – ainda uma vez! – que a política é o caminho reto e justo para um mundo melhor.
* Francisco Teixeira é professor Titular de Historia Moderna e Contemporânea da Universidade do Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).