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É golpe preocupante proposta da nova CLT em curso no Congresso

Por: Luiz Salvador* - 18/10/07

Está pronta a proposta de alteração legislativa: A NOVA CLT, com pretensões de consolidar os dispositivos normativos que especifica referente ao Direito Material Trabalhista e revoga as leis extravagantes que especifica e os artigos 1º ao 642 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Para nós um verdadeiro Código do Trabalho e que ao que tudo indica para atender a interesses do "deus mercado" que seguidamente têm defendido a extinção da Justiça do Trabalho, a flexibilização das leis trabalhistas, deixando que os direitos dos trabalhadores sejam regulados em "livre negociação" pela já ultrapassada "autonomia da vontade" em que para nós a prevalência do negociado tem demonstrado na prática que é o "trabalhador com o pescoço e o empregador com a guilhotina".

Defendemos sim a negociação, mas para que se efetiva a garantia da busca de melhores condições de vida, de trabalho e de salário e não para que o "elevador desça para o subsolo", como vem acontecendo, ao arrepio do disposto no caput do art. 7º da CF que não admite o retrocesso social.

Para nós ao que tudo indica, a proposta da inovação pretendida representa um verdadeiro Código do Trabalho flexibilizado, atendendo aos interesses dos defensores de um modelo econômico excludente centrado unicamente na busca da maior produtividade, maximização dos lucros e ao menor custo operacional possível, sem responsabilidade social, agora com nova roupagem pela adoção de legislação laboral flexibilizadora, trazida pela nova palavra de ordem dos mandantes da economia neoliberal mundialmente globalizada:

"flexiseguridad" e que já está trazendo na Europa a preocupação com o aumento do desemprego, como informa o Dr. José Augusto Ferreira da Silva, Presidente da JUTRA – (Associação Luso-Brasileira de Juristas do Trabalho) (www.jutra.org) em seu artigo recente intitulado: "EMPREGABILIDADE EM CRISE - Dezesseis milhões de desempregados na Europa e meio milhão só em Portugal".

Em nosso entendimento o trabalho da comissão que já apresentou sua proposta de consolidação da consolidação das Leis do Trabalho, se transforma em verdadeiro Código do Trabalho, com a proposta que está sendo levada a cabo de revogar as leis que considera extravagantes, artigos 1º aos 642 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT.

Como não acreditamos em "papai Noel" e nem em "saco de bondades", ao tomar conhecimento da proposta à disposição da sociedade para se manifestar no prazo exíguo de 30 dias, como presidente da Abrat (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas) saímos em campo e constituímos comissão de juristas da entidade para se debruçarem sobre as propostas de alteração já finalizadas.

A opinião de nossa Diretora Dra. Sílvia Mourão, ex-presidenta da AAT/PA e atual Diretora da OAB-PA, integrante da comissão constituída pela Abrat e que já começou a se debruçar sobre as propostas de nova alteração nos deixam mais ainda preocupados, confirmando nossas conclusões iniciais de que se trata de GOLPE contra as garantias constitucionais assegurados pela Carta Cidadã que não admite o retrocesso social:

"Queridos colegas. Ia começar o estudo comparativo quando tomei um "susto": o projeto não trata de direito processual, como podem perceber pela ementa. Na minha ótica, o projeto acaba com a CLT, pois não preserva a lei originária, tanto que revoga todos os artigos do 1º aos 642. Decididamente, não está sendo atualizada a CLT, mas acabada. Eu votaria na rejeição total do projeto. Se não for possível, vamos ter um trabalho hercúleo para apresentar manifestação, pois, como disse, a lei não é preservada (sequer se deram ao trabalho de estudar a LC 95/1998)"

A Dra. Sílvia Márcia Nogueira, advogada, Prof. Universitária e Diretora de Eventos da ABRAT, demonstrando sua inquietude com a proposta da NOVA CLT, opina de pronto pelo repúdio e arquivamento do PL 1.987/2007:

"Não ao PL 1.987/2007 que apesar das promessas de não revogar direitos já assegurados aos trabalhadores na verdade flexibiliza, precarizando direitos já consagrados e dentre outros, como, por exemplo, se extrai da nova redação emprestada ao art.5º da NOVA CLT a intenção clara, sorrateira e objetiva, buscando retirar a responsabilidade do construtor contratante, atribuindo o prejuízo em desfavor do próprio empregado contratado. Exemplo:

"No art. 5º querem acabar com o sobreaviso. Nos contratos de trabalho por obra certa o construtor apenas está obrigado a anotar a carteira do empregado se ele, o construtor, exercer a atividade em caráter permanente. Quebra-se o paradigma, com o projeto o exercício eventual da atividade é do empregador, e o risco do exercício dela é que fica com o empregado. Os sindicatos e cooperativas é que terão por missão proceder a anotação de carteira nas empreitadas, retira-se a responsabilidade do contratante (com ou sem fiscalização dele)".

E, em conseqüência propõe, que todos nos debrucemos no exame detalhado do projeto visando lançar as críticas às propostas desarrazoadas a fim de possamos sistematizá-las e editarmos uma cartilha esclarecedora, mostrando à sociedade e ao meio jurídico do País as nossas inquietaçãoes justificadas e os prejuízos que sofrerão os cidadãos e os trabalhadores de modo geral, acaso a proposta de Consolidação da Consolidação da CLT seja aprovada. Somos pelo repúdio e arquivamento do PL 1.987/2007".

Também, no mesmo sentido, o Dr. Sidnei Machado, Diretor da Abrat, Prof. Universitário e especialista em Direito do Trabalho, confirma nossas preocupações com as dimensões anunciadas da pretensão do projeto, assim se manifestando:

"Meus caros amigos juristas do trabalho. Realmente o projeto de reforma trabalhista aparece num momento perigoso. Isso não somente pela conjuntura nacional, com um congresso com enorme déficit de representatividade (como bem anotou o Nilton Correa), mas, sobretudo pelo novo debate que começa a ganhar força na Europa (como nos informa e provoca José Augusto). Vem aí com toda força a nova palavra de ordem "flexiseguridad".

A OIT, embora não tenha introduzido o tema em nenhum documento oficial, desde o ano de 2006, em todos os seus cursos faz avaliações e debates sobre a sua viabilidade na América Latina. Em novembro de 2006 saiu o chamado "Livro Verde da União Européia", com a proposta de "modernizar o direito do trabalho para fazer frente ao desafio do século XXI". Na mesma perspectiva do Livro Verde, a União Européia editou a Diretiva 21, onde expressamente defende "promover a flexibilidade combinada com segurança". Juristas atentos na Europa já ensaiam enfrentar a discussão do Livro Verde. Não há um conceito do "flexiseguridad". Na prática, significa tentar harmonizar "flexibilidade para competir e maior insegurança para quem trabalha".

Ou seja, propugna-se por um mercado de trabalho flexível, com menos segurança (e direitos) para o trabalhador. As experiências sempre citadas são da Dinamarca e Suécia. O debate está começando. A meu ver, o aprofundamento do discurso da flexbilidade, agora ganha uma maior sofisticação ao introduzir a idéia de uma "flexibilidade com inclusão". Há na proposta um discurso de formular políticas ativas no mercado de trabalho. A questão é: funciona no Brasil e na América Latina? Preparemo-nos, pois poderemos ser forçados a voltar à praça pública, cem anos depois, para defender que "o trabalho não é uma mercadoria, é um direito".

Não admitindo o retrocesso social nossa Carta Política vigente em seu art. 7º (Caput) assegura como cláusula pétrea ("imexível") que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais: além de outros que visem à melhoria de sua condição social (incisos de I a XXXIV).

A CNDS (Comissão Nacional de Direitos Sociais do Conselho Federal) da Ordem dos Advogados do Brasil, em sua última reunião realizada em Brasília, dias 6 e 7 de outubro de 2007, examinou a questão, manifestando à Presidência do Conselho Federal, Dr. Cezar Brito, suas preocupações que também foram adotadas pela Diretoria do Conselho Federal, sendo enviado Ofício à Presidência da Comissão, Dep. Cândido Vaccarezza (PT/SP), requerendo dilatação do exíguo prazo de 30 dias, diante do interesse da Ordem dos Advogados em constituir equipe de trabalho, com vista ao exame detalhado de cada dispositivo da CLT alterado, para que se possa ter um retrato exato do que foi alterado e de suas implicações prejudiciais e ou não aos trabalhadores, diante das garantias constitucionais que não admite o retrocesso social, assegurando o primado do trabalho (digno), tendo o trabalhador como sujeito de direitos e não como mero custo de produção.

Do exame dessa garantia Constitucional resta clara, claríssima a cláusula proibitiva do retrocesso social, possibilitando-se ao trabalhador, que além dos direitos fundamentais enumerados e disciplinados pelos incisos de I a XXXIV, a possibilidade de direitos decorrentes (de lei, contratuais, regulamentos de empresa, conquistas por instrumentos normativos e ou de negociação coletiva) que se incorporam ao patrimônio jurídico do trabalhador, tudo visando a melhorias das condições de vida, de trabalho e de salário, como já defendemos em nosso artigo intitulado:

"O direito do trabalhador a incorporar as vantagens e condições mais favoráveis constantes dos acordos e convenções coletivas"

Nossa Constituição Cidadã não tutela os abusos, as fraudes, as conivências para os desrespeitos aos direitos de seus cidadãos, dando prevalência ao social. Responsabiliza a empresa ao cumprimento de sua responsabilidade social ao atendimento dos objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil. Subordina o capital a ser parceiro do Estado para que este possa cumprir seu principal objetivo que é o da promoção do bem comum a todos, sem exclusão.

Essa garantia perseguida pela CF à dignidade de seus cidadãos encontra-se expressa nos enunciados maiores que subordinam todos os demais interesses em conflito regulados por legislação ordinária, como se extrai do exame dos artigos 1º e 3º da Carta Política vigente m que os objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil não é com o lucro fácil, obtido a qualquer custo, numa economia sem auto-sustentação da preservação da natureza ameaçada com a ganância do lucro sem responsabilidade social.

A Constituição Cidadã se preocupa em assegurar efetividade na edificação de um mundo melhor e possível, um mundo de inclusão, privilegiando-se o primado do trabalho (digno), assegurando a seus cidadãos e em especial o trabalhador não seja tratado pelo mercado como mera peça descartável (mercadoria), como mero custo de produção, mas como parte integrante do sistema produtivo, como sujeito de direitos.

Diante de nossa preocupação com os rumos que estão sendo dados à aprovação da NOVA CLT, segundo as propostas já constantes do PL 1.987/2007 já apresentado e com prazo exíguo de 30 dias para a sociedade se manifeste sobre suas conclusões, procuramos falar com o Edésio Passos, ex-deputado Federal do PT e que tem muita experiência na tramitação de processo junto ao Congresso Nacional que nos informou que também está preocupadíssimo com as possibilidades de retrocesso social com a aprovação de um projeto desse tipo que não teve origem em proposta do executivo, como se era de esperar, entendo, inclusive, tratar-se de proposta inconstitucional, diante de quem está por trás da iniciativa, já tida por nós como iniciativa de origem GOLPISTA, eis que sequer foram observados os critérios para alteração legislativa regulamentados pela própria Lei Complementar que regula o processo legislativo LC 95/1998, que tem o de regular o "processo legislativo", que é o de conferir aos destinatários das leis - os cidadãos - e no caso, em especial os trabalhadores, com direito ao conhecimento das regras a todos aplicáveis, prestigiando a segurança jurídica.

Leiam as últimas notícias trazidas pelo DIAP e pela própria imprensa anunciando as pretensões verdadeiras que envolvem os interesses contrariados em alterar a CLT, para amoldá-la aos novos ventos neoliberais de uma economia mundialmente globalizada e que não tem preocupação com a empregabilidade, diante do avassalador índice de desemprego que já está denunciado em Portugal, como no restante da Europa.

Conclusão

Estamos convencidos de que a proposta implica em retrocesso social e que tem origem golpista ao não ter tido a iniciativa do Executivo Federal, mas de forças paralelas que não tem legitimidade para propor alterações com as pretensões já manifestadas pelo Deputado Arlindo Chinaglia, Presidente da Câmara dos Deputados, confirmando os interesses em levar adiante o projeto da NOVA CLT com as dimensões anunciadas: "Consolida os dispositivos normativos que especifica referente ao Direito Material Trabalhista e revoga as leis extravagantes que especifica e os artigos 1º aos 642 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT".

Estamos com a proposta de nossa Diretora Dra. Sílvia Mourão e com as preocupações manifestadas pelo Dr. Sidnei Machado. A proposta de alteração legislativa trazida pelo PL 1.987/2007 não trata de direito processual, mas de alteração do direito material, acabando com a CLT vigente, não preserva a lei originária, tanto que revoga todos os artigos do 1º aos 642, ignorando por completo a própria Lei Complementar que regula o processo legislativo LC 95/1998.

Por tais razões preocupantes, conclamamos todas as forças vivas da nação a nos unirmos no exame e debate da presente dessa proposta preocupante, pugnando pela rejeição total da proposta, em movimento unificado em todo o território nacional, como já fizemos com o derrotado Projeto neoliberal de Flexibilização defendido pelo governo FHC e que ficou conhecido como o "618".

Nossa arma principal tem que ser o da resistência democrática pela defesa intransigente dos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, pugnando pelo avanço e contra o retrocesso social, exigindo-se do capital sua responsabilidade social e parceiro do estado para que este consiga cumprir seu principal objetivo que é o da promoção do bem comum a todos, sem exclusão, pugnando-se por uma economia sustentável asseguradora da empregabilidade em atendimento ao enunciado maior: dignidade da pessoa humana e em especial do trabalhador, como sujeito de direito e não como mera peça de reposição, como custo da produção.

* Luiz Salvador é presidente da Abrat (www.abrat.adv.br), secretário geral da Alal (www.alal.info), representante brasileiro no Departamento de Saúde do Trabalhador da Jutra (www.jutra.org), assessor jurídico da Aepetro e da Ativa, membro do corpo técnico do Diap e atual secretário da CNDS do Conselho Federal da OAB. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. e Página: www.defesadotrabalhador.com.br.

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Atentado contra o patrimônio nacional

Por Fábio Konder Comparato* - 04/09/07

Ao abandonar em 1997 o controle da Companhia Vale do Rio Doce ao capital privado por um preço quase 30 vezes abaixo do valor patrimonial da empresa e sem apresentar nenhuma justificativa de interesse público, o governo federal cometeu uma grossa ilegalidade e um clamoroso desmando político. Em direito privado, são anuláveis por lesão os contratos em que uma das partes, sob premente necessidade ou por inexperiência, obriga-se a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta (Código Civil, art. 157). A hipótese pode até configurar o crime de usura real, quando essa desproporção de valores dá a um dos contratantes lucro patrimonial "que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida" (lei nº 1.521, de 1951, art. 4º, b). A lei penal acrescenta que são co-autores do crime "os procuradores, mandatários ou mediadores que intervieram na operação".

É importante lembrar tais preceitos porque, no caso da alienação da Vale, a parte diretamente lesada foi o povo brasileiro, e os responsáveis pela lesão foram os agentes públicos federais que atuaram em nome da União federal, como se esta fosse a proprietária do bem público alienado. Ora, em direito público os órgãos do Estado jamais podem ser equiparados a um proprietário privado. Este, segundo a mais longeva tradição, tem o direito de usar, fruir e dispor dos bens que lhe pertencem, sem ser obrigado a prestar contas de seus atos a ninguém. O Estado, ao contrário, é mero gestor dos bens públicos, em nome do povo.

No regime democrático, os órgãos estatais atuam como delegados do povo soberano, cujos bens e interesses devem gerir e preservar. O art. 23, I, de nossa Constituição declara que é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios "conservar o patrimônio público".

Aliás, a lei nº 8.666, de 1993, que regula as licitações públicas, dispõe que a alienação de bens da administração pública é sempre "subordinada à existência de interesse público devidamente justificado" (art. 17), isto é, claramente exposto e motivado. Ora, em descarada afronta a esses preceitos fundamentais, o edital de alienação do controle da Companhia Vale do Rio Doce se limitou a declarar que a desestatização da empresa "enquadra-se nos objetivos do PND (Plano Nacional de Desestatização)". Nem uma palavra a mais.

Fora do edital, o governo federal adiantou duas justificativas: a necessidade de reduzir o endividamento público e a carência de recursos financeiros estatais para investimento na companhia. Ambas as explicações revelaram-se falsas. O endividamento do Estado, que no começo do governo Fernando Henrique era de R$ 60 bilhões, havia decuplicado ao término do segundo mandato presidencial. Por sua vez, o BNDES, dispondo de recursos públicos, financiou a desestatização da companhia e continua até hoje a lhe fazer vultosos empréstimos.

Mas a entrega de mão beijada da Vale ao capital privado foi também um desmando político colossal nesta era de globalização. O Estado desfez-se da maior exportadora mundial de minério de ferro exatamente no momento em que a China iniciava seu avanço espetacular na produção de aço. Hoje, a China absorve da Vale, isto é, de uma companhia privada, e não do Estado brasileiro, quase 30% da produção desse minério.

Além disso, a companhia, que possuía o mais completo mapa geológico do nosso território, já era, ao ser alienada, concessionária da exploração de quase 1 bilhão de toneladas de cobre, de 678 milhões de toneladas de bauxita, além da lavra de dois minérios de alto valor estratégico: o nióbio e o tungstênio. Esse trunfo político considerável foi literalmente jogado fora.

Para prevenir a repetição de atos gravosos dessa natureza, a Ordem dos Advogados do Brasil ofereceu ao Congresso Nacional dois projetos de lei, um na Câmara dos Deputados, outro no Senado, prevendo a submissão a plebiscito de todos os atos de alienação do controle de empresas estatais.

Mas o povo brasileiro não vai aguardar, passivamente, que os seus mal intitulados representantes se decidam a cumprir o dever de legislar em benefício do país ou que o Judiciário julgue, com dez anos de atraso, as 103 ações populares intentadas contra o fraudulento negócio. Nesta Semana da Pátria realiza-se, em todo o território nacional, por iniciativa dos movimentos populares, um plebiscito para que o povo possa, enfim, dizer não a esse crime de lesa-pátria.

* Fábio Konder Comparato , 70, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB. É autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno".

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O contrabando da fundação estatal

Por Altamiro Borges* - 07/08/07

Acossado pela "elite branca", que articula o golpista "Cansei", o presidente Lula precisa tomar cuidado para também não perder de vez o apoio de um importante segmento dos trabalhadores. No mês passado, o governo mais uma vez surpreendeu o sindicalismo ao enviar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar que cria as chamadas fundações estatais de direito privado. De imediato, a CUT e a Força Sindical condenaram a proposta por ela representar a privatização disfarçada dos serviços públicos e o fim da estabilidade do funcionalismo, que passaria a ser contratado por meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

As centrais e as entidades do funcionalismo vão recorrer judicialmente contra o projeto e não descartam a possibilidade de uma greve geral no setor. "Ele acaba com a estabilidade e isto torna o serviço público ainda mais vulnerável aos fatores políticos", critica Quintino Severo, secretário-geral da CUT. "A grave situação dos serviços públicos, em especial na saúde e na educação, não pode recair sobre os ombros do funcionalismo. Ela é resultado da falta de investimentos no setor e dos superávits gerados para pagar a dívida sob o controle do sistema financeiro", acrescenta João Carlos Gonçalves, o Juruna, dirigente da Força Sindical.

Interferência do Banco Mundial
O projeto das fundações estatais foi fabricado nos laboratórios do Ministério do Planejamento, hoje o principal reduto neoliberal depois da queda do ministro Antônio Palocci. Ele é bastante abrangente e perigoso. "O Poder Público poderá instituir fundações estatais com personalidade jurídica de direito privado para o desenvolvimento de atividades que não tenham fins lucrativos, não sejam exclusivas do Estado e não exijam o exercício do poder de autoridade, em áreas como educação, assistência social, saúde, ciência e tecnologia, meio ambiente, cultura, desporto, turismo, comunicação e previdência complementar do serviço público".

Este contrabando teve a assistência direta dos tecnocratas do Banco Mundial, conforme atesta documento disponível na página eletrônica deste órgão do capital financeiro. Ele foi acionado para realizar avaliações e propostas visando "aumentar a qualidade da gestão e racionalizar o gasto público". Em maio passado, o jornal O Globo revelou que "o relatório do Banco Mundial foi coordenado pelo especialista-líder em saúde do Bird no Brasil, Gerard La Forgia". Estes e outros fatos graves confirmam a suspeita de que as fundações estatais fazem parte da estratégia mundial do sistema financeiro para abocanhar altos lucros nos serviços públicos privatizados.

Os paradigmas neoliberais
Um documento prévio do Ministério do Planejamento também confirmou sua afinidade com os dogmas neoliberais. Revelou que o governo Lula "deu início em 2005 a uma série de estudos e análises críticas sobre as atuais formas jurídico-instituiconais da administração pública, com o objetivo de propor ajustes que conduzam a um arcabouço legal mais consistente e afinado com os novos paradigmas e desafios impostos à gestão pública". O intento principal do Ministério seria o de regulamentar a Emenda Constitucional número 19, de junho de 1998, imposta por FHC e acusada, inclusive pelo partido do presidente, de emenda da contra-reforma do Estado.

Caso este projeto vingue, ele consolidará a privatização do setor público iniciada no governo Collor de Mello e agravada no reinado de FHC. Como afirma a professora Sara Granemann, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, "a contra-reforma estatal que permitiu à iniciativa privada transformar quase todas as dimensões da vida social em negócios, ao definir de modo rebaixado o que são as atividades exclusivas do Estado – ação que permitiu a entrega das estatais ao mercado pela via das privatizações – tem no Projeto Fundação Estatal um estágio aprofundado da transformação do Estado em mínimo para o trabalho e máximo para o capital".

Anarquia de mercado
Entre outros prejuízos, as fundações estatais poderão visar o lucro, realizando parcerias com a iniciativa privada, o que é uma aberração no setor público, que deveria ter como único objetivo o bem-estar da sociedade, que paga impostos. Na prática, seguirão as danosas experiências das Organizações Sociais (OS) e de muitas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), já implementadas pelo tucanato em São Paulo, com péssimos resultados na qualidade dos serviços. Elas ainda serão regidas por estatutos próprios, o que trará a anarquia do mercado ao setor público, e não terão qualquer mecanismo de controle da sociedade sobre os serviços.

O projeto também garante que "as fundações estatais que atuarem nas áreas sociais gozarão de imunidade tributária sobre o patrimônio, renda ou serviços relacionados com suas finalidades essenciais e serão isentas da contribuição da seguridade social". Esta outra aberração, bem ao gosto do "deus-mercado", permitirá que as fundações utilizem os recursos do Estado, mas não contribuam para a formação do fundo da seguridade que sustenta a própria política social. Ao ficarem isentas de impostos e contribuições, elas serão alvo da cobiça das empresas privadas, representarão mais um fardo nas receitas do Estado e fragilizarão a seguridade social.

Desemprego e rotatividade
Além da piora dos serviços, a fundação estatal é um duro golpe nos direitos dos trabalhadores. A forma de contratação será a do regime jurídico da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com o fim da estabilidade no emprego dos servidores públicos. Segundo a cínica justificativa do Ministério do Planejamento, "nas áreas em que atua de forma concorrente com a iniciativa privada, é indispensável que o Estado possa aplicar o regime celetista, mais flexível e aberto à inovação e à especialidade". Na verdade, essa mudança visa golpear a estabilidade do servidor, estimular a rotatividade no emprego e reduzir o poder de barganha do sindicalismo deste setor.

Como um ente "autônomo", cada fundação terá o seu próprio quadro de pessoal e, como efeito, o seu plano de cargos e salários, o que fragmentará e estimulará a divisão do funcionalismo – mais uma vez golpeando a sua capacidade de resistência e organização. Como afirma Denise Motta, integrante da executiva nacional da CUT, esse projeto não serve à sociedade e nem aos trabalhadores e precisa ser derrubado. "Está na contramão das iniciativas do governo federal de fortalecer importantes áreas das políticas públicas, através da contratação de 30 mil servidores concursados... A precarizaçao do trabalho – traduzida na perda de estabilidade no emprego – não é compatível com o real desenvolvimento que todos pretendemos".

*Altamiro Borges, Miro é jornalista, Secretário de Comunicação do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro 'As encruzilhadas do sindicalismo' (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).

 

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Fundações estatais - na contramão da valorização dos serviços públicos

Por Denise Motta Dau* – 23/07/07

O governo apresentou à sociedade, por meio de Projeto de Lei Complementar, a figura da "fundação estatal", como forma de dar ao Poder Público "maior flexibilidade administrativa ao funcionamento de instituições públicas", em áreas como saúde, assistência social, cultura, desporto, ciência e tecnologia, meio ambiente, previdência complementar, comunicação social e turismo.

Tendo em conta a importância do tema para as bases sociais que representamos e para a sociedade brasileira como um todo, vamos reproduzir, com pequenos ajustes, a decisão adotada pela Direção Executiva da Central Única dos Trabalhadores sobre o tema.

Deste modo, é importante resgatar desde logo que, em 1988, os trabalhadores e outros movimentos sociais conseguiram elevar a educação, a saúde, a assistência social e a cultura como direitos previstos na Constituição Federal.

Ainda neste contexto de avanços estabelecidos pela Constituição Brasileira, o Sistema Único de Saúde (SUS), modelo constituído na saúde do Brasil, nas últimas duas décadas, tornou-se referência na prestação de serviços públicos, apesar da falta de verbas, da falta de vontade política e de outros obstáculos. Este modelo foi estruturado como um sistema único, hierarquizado, descentralizado e com base nos princípios da integralidade, equidade, universalidade e controle social. Nele, a própria saúde privada é vista como complementar e não concorrente com a saúde pública.

Paradoxalmente, esteve em curso no Brasil neste mesmo período a implementação de reformas neoliberais que objetivavam reduzir o tamanho do Estado Brasileiro, estreitar suas áreas de atuação e cercear sua capacidade de realização de transferência de renda por meio da diminuição dos gastos sociais, privatizações de empresas públicas e redução dos serviços públicos, entre outros. Entre as várias iniciativas adotadas, está a criação de organismos privados para administrar serviços públicos, tais como as Organizações Sociais (OS) e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Estas organizações vêm sendo implantadas por diversos governos estaduais, com destaque para os de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

A apresentação do PLP-01, a Reforma da Previdência e o recente projeto de criação das Fundações Estatais parecem-nos estar na contramão de iniciativas do governo Federal de fortalecer importantes áreas das políticas públicas através da contratação de 30.000 servidores concursados e, sobretudo, da derrota nas urnas em 2002 e 2006 da perspectiva liberalizante e reducionista do setor público.

No caso das fundações estatais, além do PL Complementar recém enviado, cumpre olhar com atenção para o estudo mais detalhado do Ministério do Planejamento, que circulou previamente ao PL, e que deixava mais claro o conjunto de características pretendidas pelo governo para as Fundações estatais. Considerando que estas características continuarão a prevalecer na Lei, tem-se que a regulamentação das fundações estatais estabelecerá que:

a) sejam autorizadas pessoas jurídicas de Direito privado para dirigir e administrar bens públicos (tais como os hospitais);

b) sejam constituídas fundações estatais em áreas "não exclusivas" do Estado, como saúde, assistência social, ciência e tecnologia, meio ambiente, cultura, esporte e previdência complementar;

c) sejam contratados funcionários na forma de concurso público, mas sem a estabilidade no emprego, tendo em vista que o Regime a vigorar será o da CLT;

d) haja a determinação de Plano de Carreira, Cargos e Salários (PCCS) próprios para cada fundação;

e) sejam realizados contratos de gestão com organismos estatais superiores e venda de outros serviços para terceiros;

f) será obrigatória a realização de licitações, mas estas poderão ter regulamento próprio.

De acordo com o que foi veiculado no mencionado estudo e em artigos escritos por membros do governo, a área da saúde será a primeira a implementar este tipo de organização.

Em que pese nossa concordância quanto à necessidade de uma ampla discussão quanto ao papel do Estado, serviços por ele prestados, regime de contratação, lei de licitações e alternativas de personalidades jurídicas relacionadas ao setor público, somos contrários ao PL das fundações estatais. Apontamos os seguintes elementos que embasam nossa posição: 1) as áreas referidas no projeto do governo devem ser vistas, conforme nossa Constituição Federal, como direitos universais e inalienáveis, sendo sua garantia um dever do Estado. O setor privado pode ter uma concessão pública do governo, mas não de caráter "concorrencial" com o Estado; 2) O projeto interrompe a consolidação do SUS e entra em confronto com seus princípios fundamentais; 3) O projeto abandona a perspectiva da construção de uma carreira única para os profissionais da saúde; 4) o fato de que a não previsão da estabilidade para os futuros empregados destas fundações representa a retirada de direitos sociais historicamente conquistados pelos servidores públicos; 5) O controle social não está previsto no projeto da fundação estatal; 6) O projeto da fundação estatal é complementar ao PLP 01, que limita o crescimento dos gastos com a folha de pagamentos do funcionalismo em apenas 1,5%.

Para terminar, cabe dizer que, para nós, é fundamental instrumentalizar o Estado com as devidas condições de flexibilidade e eficiência operacional para que este continue a ser ator central no desenvolvimento econômico e social do país. Para isto, é fundamental valorizar o serviço público e os trabalhadores que aí atuam. Criar "novas figuras jurídicas" com o objetivo principal da precarização do trabalho - traduzida na perda da estabilidade do emprego - não é compatível com o real desenvolvimento que todos pretendemos.

* Denise Motta Dau – Secretária Nacional de Organização da CUT.

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Emenda 3 - TV Globo ataca direitos trabalhistas

Por Altamiro Borges* - 08/05/07

Não por mera coincidência, a poderosa TV Globo levou ao ar na semana da realização dos protestos do Dia Internacional dos Trabalhadores uma série de seis reportagens sobre as relações de trabalho no país. Intitulada Brasil Informal e produzida com alto padrão de qualidade e de manipulação, a série teve como objetivo explícito demonstrar que o alto índice de informalidade no país decorre da legislação trabalhista, adjetivada sempre como "atrasada, obsoleta" e outros palavrões. O trabalhador com registro em carteira e com direitos básicos seria o culpado pelo desemprego e pelo infortúnio dos milhões que vivem dos bicos.

As reportagens do Jornal Nacional, além de afrontarem os trabalhadores na semana da comemoração do 1º de Maio, também tiveram um alvo político mais direto. No momento em que se discute no parlamento o veto do presidencial à nefasta Emenda 3, que precariza ainda mais as relações trabalhistas e, inclusive, estimula o trabalho escravo, a poderosa emissora almejou manifestar sua oposição à decisão do governo Lula. O presidente também seria culpado pelo Brasil Informal, já que veta uma medida "modernizadora" e não tem coragem para enterrar de vez a "obsoleta" CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

"Privilégios" dos registrados

Na primeira reportagem da série, o Jornal Nacional tratou do "drama da informalidade no Brasil". Sem pestanejar, o repórter Tonico Ferreira, que há muito renegou seus artigos no jornal Movimento durante a ditadura militar, afirmou que 46,6% dos trabalhadores usufruem de "benefícios", enquanto outros 53,4% "pagam a conta", vivendo na informalidade. Os "privilégios" citados seriam "férias, gratificação de um terço do salário nas férias, descanso remunerado, décimo terceiro, pagamento de hora extra", entre outros. Para ser coerente, deveria abdicar de seu alto salário e de seus excitantes finais de semana em alto-mar.

Sua reportagem é ardilosa, um primor de deturpação jornalística. Ao citar o caso da faxineira Lindinalva Silva, que não é registrada "porque as patroas não podem arcar com os altos encargos", ela tenta jogar o trabalhador informal contra o registrado – numa manobra para dividir a classe. É como se o registrado fosse o culpado pelas agruras da faxineira, que "trabalha de manhã para comer à noite". A desonestidade chega ao ponto dele só entrevistar notórios partidários da flexibilização e sem citar suas origens – como Edward Amadeo, ex-ministro de FHC, e José Pastore, ex-coordenador de programa de Geraldo Alckmin.

A falsidade dos encargos sociais

Já no segundo programa, "os limites ao crescimento das micro e pequenas empresas", o Jornal Nacional tentou seduzir os pequenos proprietários ao insinuar que seus males decorrem da legislação trabalhista. A reportagem chega a justificar as picaretagens de certos empresários que não registram os empregados para sonegar direitos. A matéria nada fala sobre o poder dos monopólios, que estrangula os pequenos negócios, nem da política de juros elevados, que beneficia os banqueiros. Outro tucano ultraliberal serve como fonte do artigo, o economista Eduardo Giannetti, que condena a falta de "ambiente para os negócios" no país.

Na terceira, a TV Globo comparou a legislação brasileira com a de outros países capitalistas. "Nos EUA, a porcentagem que o empregador paga de encargos sobre a folha de pagamento é de 9,03%... Já na rica Alemanha, 60%. O Brasil é o campeão mundial absoluto em encargos: 102,7%". Os números, como já demonstrou o economista Marcio Pochmann, são falsos porque misturam os impostos indiretos com os benefícios sociais. Além disso, escondem os péssimos salários pagos no Brasil. O "jornalista" só faltou aconselhar aos empresários que não paguem os encargos e desrespeitem a CLT. "No Brasil, o empresário que assina a carteira dos funcionários sofre uma concorrência brutal e desleal dos que não fazem isso".

"Bons exemplos" da flexibilização

Na quarta reportagem, "informalidade aumenta gastos do país", a TV Globo esquece a criminosa taxa de juros que agrava o déficit fiscal e deixa implícito que a crise do Estado decorre, também, do rigor das leis trabalhistas. Novamente citando Eduardo Giannetti, insinua que a informalidade eleva os gastos públicos, o que, na lógica deste repórter elitista, é um absurdo. "Vai cair na conta do governo, ou seja, na conta de todos contribuintes, o custo da assistencial social às pessoas que não pagam impostos ou não contribuem para a Previdência, mas que envelhecem e adoecem", lamenta, talvez pensando no seu consumo de luxo.

Na penúltima matéria de série, a poderosa TV Globo acionou seus repórteres no exterior para defender os "bons exemplos" dos EUA e da Espanha. Como que dando conselhos, o texto opina que para solucionar a informalidade nestes países "foi preciso que cada um entrasse com sua parcela de sacrifícios. Empresas e empregados abriram mão de direitos e a legislação se tornou mais flexível". No caso dos EUA, não há leis trabalhistas. Prevalecem "os acordos assinados entre o próprio trabalhador e o empregador. Eles decidem salário, carga horária, pensão, tempo de férias". O texto cita uma enfermeira que tem só dez dias de férias e a liberdade do patrão de "demitir o empregado a qualquer momento, sem explicação, nem indenização".

Já a Espanha, que sofreu um brutal desmonte do trabalho na gestão direitista de José Aznar, seria o outro exemplo "bem sucedido" de combate à informalidade. "Com as mudanças na legislação trabalhista foram criados vários tipos de contratos de trabalho: de tempo parcial, de estímulo à contratação de jovens, por obra ou projeto, entre outros. Além disso, a legislação é uma das mais flexíveis da Europa e se limita a estabelecer principais gerais... As férias são de 20 dias úteis, sem abono. Os encargos sociais, incluindo a contribuição para a Previdência, custam ao patrão apenas 30% do valor do salário. Muitos trabalhadores optam pela contratação por temporada". Um verdadeiro paraíso, segundo a ótica neoliberal da TV Globo.

TV Globo, "o partido do capital"

O Jornal Nacional da TV Globo encerrou sua série apresentando, arrogantemente, "as soluções para o problema do trabalho informal no Brasil", o que confirma a sua pretensão de ser o principal "partido do capital" no país. Entre outras propostas, pregou a diminuição da burocracia, no qual estaria incluída a da fiscalização do trabalho – não é para menos que a regressão discutida no parlamento também é chamada de "Emenda da TV Globo" – e a diminuição dos tributos, uma antiga bandeira do patronato. "A redução da carga tributária será o maior combate à informalidade", afirma o presidente da Fiesp, Paulo Skaf.

Talvez devido às críticas que a série recebeu, na última reportagem foram ouvidas vozes discordantes da dogmática neoliberal, como a do presidente da CUT, Artur Henrique, que rechaçou qualquer proposta de flexibilização trabalhista. "A não ser que fosse para flexibilizar para cima. Ou seja, uma negociação no sentido de ampliar e melhorar cada vez mais esses direitos para o conjunto da classe trabalhadora". Mas, para se contrapor as "ingênuas" sugestões do sindicalismo, o comportado Tonico Ferreira concluiu a série entrevistando vários "especialistas" no assunto, fechando com perverso requinte a série da TV Globo.

"Valores nacionais" e escravidão

"Muitos especialistas acham que a informalidade só irá diminuir se houver uma redução no custo das contratações formais. Edward Amadeo, que já foi ministro do trabalho [o repórter não diz de quem], defende uma legislação mais flexível. 'Minha sugestão é que você faça uma revisão profunda da CLT'. O professor José Pastore, uma das maiores autoridades em relações do trabalho no Brasil [ele também não diz que o tal professor foi assessor do derrotado Geraldo Alckmin], propõe uma espécie de Super-Simples para os contratos de trabalho". E outro "especialista", Fábio Giambiagi, outro tucano de carteirinha, prega uma nova reforma da Previdência, com o aumento da idade de aposentadoria para "70 anos e não de 65 e com um valor que acho que deveria ser inferior a um salário mínimo".

Como se observa, a poderosa Rede Globo está em plena campanha contra os direitos trabalhistas. Os seus presidentes, Collor de Mello e FHC, não conseguiram "enterrar de vez" a CLT e agora ela tenta emplacar o mesmo programa no governo do sindicalista Lula. Pouco antes desta série, o Fantástico havia pregado a urgência da reforma da Previdência. A proposta foi reforçada em abril num Globo Repórter especial e tem sido martelada, de maneira sorrateira, até nas novelas da emissora. A ofensiva é violenta e revela o papel reacionário da emissora dos Marinhos, que se jacta de expressar os valores nacionais, mas só se for de uma nação com trabalhadores precarizados e sem direitos, quase escravos.

* Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro "As encruzilhadas do sindicalismo" (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).

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Aumentar a maioridade penal é consagrar o genocídio juvenil

Por Cláudia Santiago* – 03/05/07

Não é nem coisa de se recorrer às estatísticas numa hora dessas. Se estivermos abertos a enxergar o que se passa ao nosso redor, facilmente compreenderemos que a proposta de redução da maioridade penal tem embutida em seu bojo o desejo de enterrar vivos os filhos e os netos da classe trabalhadora. O desejo de excluir. De se livrar dessa gente indesejável.

Todos os que queremos saber, sabemos como são as condições carcerárias brasileiras. Os que queremos saber, sabemos que só os pobres vão para o sistema penitenciário. Os ricos não cumprem pena embora cometam crimes tão hediondos e cruéis quanto os pobres. No nosso país há até a vergonhosa "prisão especial", um privilegio para criminosos que "têm o nível superior", ou seja cursaram uma faculdade. Para estas pessoas há um tratamento especial... afinal, elas estudaram e por isso merecem uma pena mais leve, em ambiente digno deles.

Recentemente, se fez toda uma onda sobre "crimes hediondos". Será que queimar índio em Brasília não é crime hediondo? Ou matar pai e mãe numa casa chique nos Jardins de São Paulo não é crime hediondo? Ou matar a mulher por ciúme não é barbaridade? E o que é afogar colega calouro em piscina de universidade? E quanto a dar ordem para matar sem-terra que caminham em busca de resposta para suas reivindicações? E vender sentenças judiciais para livrar a cara de bandidos, não é crime hediondo?

Como vivem hoje estes criminosos? Estão atrás das grades como certamente estariam se fossem pobres?

Por tudo isso, podemos constatar que a proposta de redução da maioridade penal não tem como objetivo combater a violência. Tem como objetivo se livrar dos pobres.

Os jornais do último final de semana de abril trouxeram dados sobre a maioridade penal no mundo. Isso funciona para fazer cabeça. A história mostra que os países menos desenvolvidos sempre buscaram imitar os mais desenvolvidos. Os da Europa Central, há 100 anos, queriam ser iguais aos do Norte. O Japão queria ser igual á Europa e a Europa Ocidental no pós-45 copiar os Estados Unidos.

Aqui, na terrinha, já se desejou ser França. Hoje deseja-se ser EUA. Portanto, este argumento de que em outros países funciona assim ou assado, pega. Se nos Estados Unidos a idade penal varia de 7 a 14 anos, por que aqui tem-se de esperar até os 18? Esta vai ser a pergunta ouvida em tudo que é esquina.

Os mesmos jornais que apontavam apenas Colômbia, Costa Rica, Equador e Venezuela com idade penal de 18 anos; não falavam que na França, por exemplo, a maioridade penal é de 18 anos e que na Inglaterra, a maioridade penal é de vinte e um anos para crimes comuns, de acordo com o advogado criminalista, Luiz Augusto Coutinho. (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4218)

Agora, se quisermos nos ater às estatísticas, podemos citar artigo do desembargador Siro Darlan, no qual ele afirma que de acordo com "os índices oficiais não chegam a 2% os atos violentos atribuídos aos jovens, e que o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro constatou que eles são agentes de violência num percentual de 9,8% contra 91,2% onde são vítimas." (http://www.tj.rj.gov.br/, em 28.4.07).

E só para terminar. Há mesmo países onde a maioridade penal seja de sete anos de idade. Será que este fato não nos deveria levar a uma reflexão profunda sobre o tipo de sociedade em que estamos inseridos? "Será que estamos todos cegos?", como afirma o escritor português José Saramago, no filme Janela da Alma. "Nunca vivemos tanto a caverna de Platão como hoje. As imagens substituem a realidade. Estamos todos cegos da razão e da sensibilidade. Nos tornamos agressivos, egoístas, violentos, num mundo desigual e de sofrimento".

* Cláudia Santiago é jornalista da CUT/RJ e integra a coordenação do Núcleo Piratininga de Comunicação.

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TV Digital - Escolha compromete futuro por benefício pífio do presente

Por Rogério Cezar de Cerqueira Leite* - 14/04/2006

Em meados da década de 70, o poderoso "Sistema Bell", que englobava então toda a telefonia dos EUA, do Canadá e muito do tráfego internacional de comunicações, lançou uma concorrência internacional para a primeira encomenda de fibras óticas. Essa inovação havia ocorrido graças a uma colaboração entre os laboratórios da própria Bell e a Corning, uma empresa especializada em vidros.

Não obstante, ganha a concorrência uma empresa japonesa, a Fujitsu. O governo americano interveio contra essa aquisição, sob o argumento de que a produção fora do país acarretaria perda de capacidade tecnológica. Os japoneses ofereceram-se, então, para montar uma fábrica nos EUA, o que foi rechaçado com ainda maior vigor pelo governo americano. E a aquisição teve que ser realizada nos EUA, em empresa americana.

Ora, os EUA não estavam apenas defendendo uma indústria própria. Antes de mais nada, preservavam seu desenvolvimento tecnológico futuro. Embora possuíssem um aparato tecnológico muito mais avançado à época do que o Japão, sabiam que perderiam essa vantagem com a cessão do próprio mercado.

A implantação de uma fábrica japonesa nos EUA traria certamente vantagens a curto prazo (investimentos) e a médio prazo (empregos, renda etc). Todavia, a longo prazo, haveria prejuízos irreparáveis para a indústria americana, como perdas de competitividade devido à redução de atividades de pesquisas, que, por sua vez, tornariam-se insustentáveis sem níveis adequados de produção.

Outro fator que justificaria em si a decisão protecionista americana é a cultura empresarial característica da indústria japonesa. Quantas indústrias de autopeças brasileiras conseguem fornecer para montadoras japonesas? Preferem essas importar ou trazer uma fornecedora do Japão. Basta lembrar que praticamente todo o sistema produtivo japonês é composto por apenas seis gigantescos conglomerados, ou melhor, feudos.

Pois bem, o Brasil, depois de longas discussões, escolheu a tecnologia japonesa para seu sistema de TV Digital. Mostrou coragem. Nenhum outro país do mundo o fez, senão o próprio Japão, cuja televisão é estatizada e, portanto, funciona também como agência reguladora. A diferença essencial entre a tecnologia japonesa e as duas outras é que a primeira faz com que todo usuário eventual se submeta às empresas de televisão, enquanto com a adoção de uma das outras tecnologias a telefonia móvel e outras formas de comunicação interativa se tornam autônomas, ou seja, não precisam ser intermediadas pelas empresas de televisão.

Podemos compreender, portanto, por que as empresas de TV escolheram e moveram mundos e fundos para que fosse escolhida a tecnologia japonesa. Pode-se imaginar que imenso poder político e financeiro conseguiram. Qualquer outra consideração sobre características tecnológicas ou patrimonial é perfumaria. Para compensar essa faceta negativa da escolha, o Brasil receberia de presente duas fábricas, uma de semicondutores (componentes) e outra de monitores a plasma. Espera-se, com isso, economizar US$ 1 bilhão anualmente com a substituição de importações. E também empregos serão criados. Todavia novamente se compromete o futuro em troca de benefícios pífios do presente.

Ocupam-se espaços tecnológicos presentes e futuros e mercados imensos. São R$ 2 bilhões de investimentos nas duas fábricas. Entretanto, só os conversores a serem inseridos nos atuais aparelhos necessários para a tecnologia digital já representam um mercado de R$ 30 bilhões a R$ 50 bilhões. Esses japoneses são vivos, não são? Aprenderam com os gregos, os que derrotaram Tróia.

Outra grande perda é a da convivência e trocas tecnológicas e comerciais com o resto do mundo. Portanto ninguém poderá acreditar que a escolha da tecnologia japonesa foi feita por razões de ordem tecnológica ou mesmo econômica. Também não há nenhuma urgência quanto à implantação de um sistema digital no Brasil. Quase nenhum país do mundo implantou, de fato, a TV digital. Nem os EUA nem o próprio Japão, onde apenas duas cidades a experimentam atualmente.

Então por que esse açodamento histérico? Falou-se na necessidade vital para a Copa do Mundo ou para o Sete de Setembro, absurdos tecnológicos e financeiros, que apenas os apoucados tradicionais analistas podem conceber. Só há uma explicação. Vamos ver se você, caro leitor inteligente, é capaz de adivinhar. Plim-Plim!

* Rogério Cezar de Cerqueira Leite, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.

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Enfim, o nepotismo começa a naufragar

Por Madalena Nunes* – 16/03/06

Não foi uma luta fácil. Conseguir a proibição concreta do nepotismo no Judiciário é o resultado de décadas de lutas e ações da organização sindical no Poder Judiciário e demais organizações sociais, que muito fizeram para conquistar essa vitória.

Foram muitas campanhas de esclarecimento do que significa nepotismo e dos prejuízos que essa prática traz ao serviço público; Foram muitas denúncias da imoralidade que representa o nepotismo dentro do Poder Público; Foram muitas ações políticas e mesmo judiciais buscando o resgate da justiça contra a prática do nepotismo. Foi uma batalha gigante, em todo país. Até porque é gigante a causa, pois significa a contestação contra a prática arraigada de favorecimento familiar e parentesco por parte de quem detém o poder.

Dentro do Judiciário essa prática é comum e considerada natural pela maioria dos juízes e desembargadores. Mas não pelas servidoras e servidores concursados, aviltados nos seus direitos e ainda obrigados a executar tarefas daqueles que muitas vezes sequer compareciam ao local de trabalho, pois bastava serem parentes de magistrados para terem direitos a significativos salários e outros benefícios.

Nesse caso, natural é a indignação. E esta não se acomodou, antes, reagiu e resistiu de todas as formas, onde o movimento sindical no judiciário exerceu um papel fundamental, não se intimidando diante das ameaças e perseguições. O tacão foi pesado.  Militantes sindicais que assumiram o desafio de lutar e denunciar a prática do nepotismo perseguidos, transferidos para outras localidades, tiveram seus salários reduzidos, não recebiam promoções, enfim, sofreram retaliações e discriminações de todas as formas.

Mas isso não é tudo. Insatisfeitos com as perseguições e discriminações, alguns juízes presidentes de tribunais sem justificativas junto à sociedade de suas práticas nepotistas, demonstraram sua força de poder demitindo sumariamente militantes sindicais. É importante aqui registrar dois casos arbitrários de demissões, emblemáticos nas perseguições a militantes sindicais que ousaram lutar pelo fim do nepotismo: Moisés Szmer Pereira, que teve sua aposentadoria cassada em 1994, felizmente, hoje revertido aos quadros do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro e Paulo Roberto Rios Ribeiro, exonerado também sumariamente do Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão em 1995, e mesmo depois de dez anos, com inúmeras ações judiciais e políticas no sentido de reverter sua exoneração, implementadas pelo movimento sindical através dos Sindicatos do Judiciário e da Federação Nacional dos Trabalhadores no Judiciário Federal e Ministério Público da União, ainda permanece exonerado, numa demonstração de força dos detentores do poder e da prática do nepotismo no Judiciário.

Também não podemos deixar de citar o caso do Tribunal de Justiça do Piauí, quando em 1993, o Sindicato dos Servidores no Poder Judiciário do Piauí denunciou o chamado "três da alegria", onde vários parentes e amigos de desembargadores e juízes foram agraciados com promoções ou nomeações para cargos no TJ do Piauí.

Imediatamente após as denúncias, o presidente do tribunal suspendeu o recolhimento da contribuição sindical, obrigou servidores a se desfiliarem do sindicato e aos que ousaram resistir, restou a redução de 50% nos seus salários, contrariando, assim, a legislação brasileira, inclusive normas constitucionais, numa atitude autoritária e arbitrária de interferência e intervenção na organização sindical e de abuso de poder.

Isso é só uma amostra das perseguições e retaliações sofridas em nome da manutenção do nepotismo, mas existem inúmeros outros exemplos que o espaço não nos permite citar.

Mas "tudo vale a pena se a alma não é pequena". Hoje podemos comemorar um passo significativo rumo ao fim do nepotismo. Após a decisão do Supremo Tribunal Federal, que numa votação histórica no dia 16 de fevereiro de 2006, por 9 votos a 1,  manteve a Resolução de n° 7/2005, do Conselho Nacional de Justiça, vedando a contratação de parentes de magistrados até o terceiro grau, para cargos de chefia, direção e assessoramento no Poder Judiciário.

Essa medida não é a única que proíbe o nepotismo, existem inúmeras outras, inclusive os princípios constitucionais de impessoalidade e moralidade no serviço público. Mas com certeza é a que teve maior repercussão, até por que vivemos um momento propício para questionamentos dos desmandos do poder público, onde a sociedade não mais aceita práticas arcaicas e viciadas de apropriação do público pelo privado.

Nessa luta não caminhamos sozinhos, a postura de contestação do nepotismo por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, da Associação Nacional dos Magistrados, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, e muitas outras organizações sociais foi determinante para essa conquista.

Podemos comemorar o fim do nepotismo? Ainda não, visto que é uma constante no Poder Executivo e Legislativo. No Judiciário, o Brasil inteiro viu a reação de juizes e desembargadores negando-se a demitir seus parentes. Mas podemos dizer que o nepotismo começa a naufragar. Nós do Judiciário estamos em festa, pois tendo como aliado o "Guardião da Constituição", como é conhecido o Supremo Tribunal Federal, podemos dizer que o nepotismo sofreu um golpe fatal, pois não haveremos de permitir mais essa prática ainda que camuflada, seja direto ou na forma de troca de favores, conhecido como nepotismo cruzado.

Nesse sentido, não poderíamos deixar de parabenizar o Movimento Sindical no Judiciário, pioneiro nessa luta e que destemidamente foi em busca de aliados a fim de contribuir para um Judiciário justo, democrático e moralizado, com credibilidade social e sem a mácula do clientelismo e apadrinhamento, práticas que transformam a administração pública em negócios de natureza privada e familiar.

Com isso podemos acreditar que é possível avançar e garantir a proibição do nepotismo também no Executivo e Legislativo. Registramos que já existe em tramitação na Câmara dos Deputados uma lei que proíbe o nepotismo naquela instituição, onde devemos iniciar uma campanha pela sua aprovação e estender a proibição dessa prática em todo poder público, pois se é público, não se admite apropriação por quem quer que seja. Continuamos lutando para que o acesso ao serviço público seja exclusivamente através de concurso público, é esse o caminho para garantir um serviço público de qualidade e sem clientelismo.

Viva o fim do nepotismo! Viva a luta dos trabalhadores!

* Maria Madalena Nunes é servidora do Judiciário Federal, ex-diretora da Fenajufe e do Sintrajufe/PI, licenciada em História pela UESPI e diretora de Organização da Central Única dos Trabalhadores no Piauí.

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Indústria do cargo comissionado é que propicia nepotismo

Por Marcelo Semer* - 08/02/06

Desde que foi editada, em novembro, a republicana resolução antinepotismo do Conselho Nacional de Justiça vem sofrendo contínuos ataques dentro do Judiciário. Logo de cara, o Colégio de Corregedores-Gerais incitou seu descumprimento com um ambíguo chamado à resistência, espécie de desobediência civil "do andar de cima".

Os presidentes de tribunais de Justiça do país, a seu turno, pressionaram o CNJ para rever pontos da resolução, sob a sutil forma de pedido de esclarecimento, conseguindo, inclusive, abrandá-la. Agora são decisões judiciais que pipocam Brasil afora para impedir que as exonerações sejam realizadas até 14 de fevereiro, data-limite fixada pelo CNJ.

Para espancar de vez as dúvidas acerca da legalidade da resolução, melhor seria se o Supremo Tribunal Federal tivesse desde logo apreciado a questão quando interposta Ação Direta de Inconstitucionalidade. A ADI foi, no entanto, indeferida liminarmente por uma interpretação restritiva sobre legitimidade processual.

A decisão deu ensejo a uma multiplicidade de Mandados de Segurança a serem apreciados justamente pelas Justiças locais, mais refratárias à própria resolução, ainda que possa ser levantada controvérsia a respeito da competência, uma vez que os tribunais estariam apenas cumprindo uma determinação do CNJ, que, como "autoridade coatora", deslocaria o foro de julgamento para o Supremo. É o STF, aliás, o tribunal competente para processar e julgar, originariamente, todas as ações contra o CNJ, segundo dispõe o artigo 103, inciso I, alínea r, da Constituição Federal, na redação da Emenda 45 (reforma do Judiciário).

A reação, todavia, não é apenas jurídica, é política e cultural. Isso explica por que nenhuma providência foi tomada nos outros Poderes para a exoneração dos parentes de seus cargos, observando que a decisão do CNJ se baseou nos princípios da moralidade administrativa e impessoalidade, previstos na Constituição em vigor no país há 17 anos. O nepotismo, no entanto, é muito mais antigo. É herdeiro direto das capitanias hereditárias, com as quais o poder central distribuía o que era público de forma privada, como se fez por tantos e tantos anos com cartórios extrajudiciais, delegações do Estado que passavam de pai para filho.

A lógica de tratar a coisa pública como particular ainda persiste no preenchimento de cargos de livre provimento: este é o verdadeiro pai de todos os nepotismos. É a ampla liberdade concedida a administradores, legisladores e desembargadores para contratarem assessores e funcionários graduados sem concurso público, sob o argumento da confiança. Essa indústria do cargo comissionado é que propicia nepotismos e apadrinhamentos de todo o gênero, invertendo a lógica de excelência e isonomia que deve existir no recrutamento dos servidores.

Os juízes de primeira instância lidam com milhares de processos nos cartórios confiados à sua administração. Não contam com nenhum cargo de livre provimento. O escrivão, que prepara minutas de despachos, o escrevente, que digita termos de audiências e sentenças, ou os oficiais de Justiça, que executam decisões, todos são funcionários devidamente concursados. Por que os desembargadores precisam ter assessores comissionados que podem, e muitas vezes são, recrutados fora dos quadros do Tribunal? É neste cargo, na maioria dos estados, e em particular São Paulo é uma exceção, que se aloca boa parte dos parentes.

Há um vasto corpo técnico de assessores parlamentares no Congresso Nacional, especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento, aprovados em concurso público de extrema dificuldade. Por que necessitam os parlamentares de um exército de assessores de sua livre confiança, no mais das vezes amigos, parentes ou companheiros de partido derrotados? Quantos não são os casos em que estes cargos no Legislativo representam simplesmente uma forma travestida de incrementar os próprios salários de deputados e senadores? E no Executivo o fato é tão público quanto notório; cargos comissionados são historicamente objetos de negociação por apoios partidários. E mesmo os recentes escândalos políticos não foram capazes de diminuir a sua incidência na máquina federal.

O artigo 37, inciso V, da Constituição Federal, impõe a edição de lei disciplinando reserva mínima para cargos comissionados a servidores efetivos de carreira. Poucas foram as leis promulgadas nesse sentido para regulamentar a Constituição e menor ainda o interesse em cumpri-las. Recentemente, um juiz de Pernambuco decidiu que o Tribunal de Justiça do estado deveria afastar funcionários comissionados de fora da carreira contratados acima do porcentual previsto na lei local. A decisão foi cassada pelo próprio réu antes de ser cumprida.

A proliferação de cargos de livre nomeação subverte a ótica republicana no sentido de transferir a idéia pública de confiança (cargo demissível ad nutum) para a esfera privada (compadrio). Os cargos passam a servir como favorecimentos de toda espécie, além de criar a figura de servidores públicos que servem mais aos interesses de seus contratantes, de quem são devedores, do que propriamente ao Estado.

Para acabar com as várias espécies de nepotismo, andariam bem os senhores legisladores, senhores administradores, senhores desembargadores e senhores ministros se reduzissem o número dos servidores livremente contratados e aumentassem o espaço para os cargos destinados aos funcionários aprovados em concursos. Teríamos, assim, uma administração mais profissional e um serviço público mais transparente.

* Marcelo Semer é juiz de direito em São Paulo e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.

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A injustiça do nepotismo

Por Adilson Luiz Gonçalves* - 02/02/06

A prática de nomear parentes para cargos públicos é muito mais antiga que a definição da palavra nepotismo. A desculpa sempre foi: afinidade e lealdade pessoais, embora isso não garantisse, necessariamente, conduta ética e moral, perante o povo. Prova disso é que essa "afinidade" está, normalmente, associada a outros tipos de favorecimento, tais como: relevar incompetências, perdoar deslizes e, principalmente, afetar decisões.

Dependendo do status de quem nomeia, isso pode ter conseqüências desastrosas, que prejudicam a credibilidade de instituições que deveriam estar acima de qualquer suspeita. No caso de monarquias, ditaduras e empresas familiares o nepotismo é, até, compreensível; mas quando se trata de instituições públicas, em regimes democráticos, sobretudo no âmbito jurídico, ele é injustificável.

Não é esse tipo de "cegueira" que o povo espera da Justiça, e há várias razões para isso: uma delas é a natureza desse modelo de governo: igualdade para todos. Bem distante da adaptação oportunista suína, descrita por Orwell, em "A Revolução dos Bichos". Afinal, se o poder emana do povo, não pode ser exercido a sua revelia ou para o benefício de poucos. Utopia... Outra é a existência dos concursos públicos: se o parente é, de fato, competente, não terá problemas para conquistar a vaga num processo seletivo honesto.

Assim sendo, não há como sustentar essa prática nefasta, em qualquer área, ainda mais no Poder Judiciário. Afinal, aproveitar de uma tradição espúria, como se fora uma prerrogativa de cargo, ou direito adquirido, não se coaduna com a conduta ilibada que todo o magistrado deve demonstrar perante a sociedade. De fato, como alguém pode ser justo, quando se vale de injustiças para proveito próprio ou de parentes?

Infelizmente, o manto da justiça "cega" alguns, que perdem essa noção imprescindível de democracia. Estes, ofuscados pelo poder secular, sentam em seus "tronos", e se julgam infalíveis, imaculados e intocáveis. São implacáveis com os que julgam. Mas esquecem de todos esses rigores quando se trata de beneficiar seus interesses e afetos. Transformam em "patrimônio e tradição familiares" o que deveria ser acessível a todos, por competência e merecimento. Confundem organogramas funcionais com árvores genealógicas. Talvez pensem, data vênia: "Parente também é povo!". Só que nomeação arbitrária para cargos públicos não pode ser considerada como um mimo ou uma herança.

Felizmente, parecem ser pouquíssimos os adeptos desse expediente injusto.

Consciente dessa incongruência, moral e ética, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), emitiu, recentemente, uma resolução que proíbe o nepotismo no Poder Judiciário... Ora, viva! Que belíssimo exemplo esse, que dá força, inclusive, para que a opinião pública pressione os demais poderes a adotar o mesmo procedimento. Isso seria "justo, muito justo, aliás, justíssimo".

Surpresa. Juízes de vários Estados concederam liminares contra essa resolução. Alegaram que ela é inconstitucional.

Será que o CNJ desconsiderou a Carta Magna? Será que as leis brasileiras são, propositalmente, ambíguas? Será, então, que o nepotismo é constitucional? Se for, está ferido o maior de todos os preceitos da Constituição: o da igualdade.

Infelizmente, não há júri popular para dar veredicto, nesses casos; como não há plebiscitos, quando o assunto é criação de impostos, aumento de alíquotas ou da remuneração de nossos representantes no Executivo, Legislativo e Judiciário.

Assim, os interesses corporativos e familiares, de poucos, continuam privilegiados, em detrimento dos interesses públicos. E o Poder Judiciário, como, no mais, todos os outros, é, salvo erro de juízo, um poder público, ao menos na Constituição.

Inconstitucional é, como no caso do nepotismo, transformar o público em privado, qualquer que seja a instância democrática!

*Adilson Luiz Gonçalves é escritor, engenheiro, professor universitário e mestrando em Educação. Autor do livro: "Sobre Almas e Pilhas", Editora: Espaço do Autor.

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Dilema Tostines: o FSM veio à Venezuela, ou a Venezuela é que foi ao Fórum?

Por Gilberto Maringoni*, direto de Caracas – 25/01/06

O Fórum Social Mundial de 2006 começou em La Paz, Bolívia, no domingo, a alguns milhares de quilômetros da sede oficial, Caracas. A posse de Evo Morales, não apenas por ser realizada, coincidentemente, dois dias antes da marcha de abertura, mas pelo significado político, encarna à perfeição a idéia daqueles que vêem o Fórum como um processo político contínuo e não como um evento delimitado em poucos dias.

O afiado discurso inaugural, de uma hora e meia, do novo mandatário boliviano pontuou o variado ideário que impulsiona as gigantescas assembléias do movimento por outro mundo possível. Evo fez um rechaço às discriminações de qualquer ordem, denunciou a privatização de recursos naturais, a supremacia do capital financeiro e do imperialismo e clamou por uma nova ordem, mais justa, baseada em Estados democráticos.

Aliás, não apenas com Evo Morales, mas com a chamada onda esquerdista que varre a América Latina, as idéias centrais do Fórum saem do terreno das intenções e ganham materialidade. Há, em alguns países, um processo de "cotidianização" de pequenos e grandes desejos coletivos. Isso se dá não apenas pelas ações de alguns governos que enfrentam a ortodoxia ultraliberal, mas especialmente pelos povos a repudiar as políticas de ajustes regressivos levadas a cabo nas últimas duas décadas.

Ventos favoráveis
Possivelmente a América Latina não viva um período tão favorável aos movimentos populares desde a conjuntura aberta em 1952, com a revolução boliviana. Ela passou pela eleição do nacionalista Jacobo Árbenz, na Guatemala em 1953, pela derrubada do ditador Marcos Pérez Jiménez, na Venezuela em 1958, pelo avanço de mobilizações populares no Brasil e que teve seu ponto alto na revolução cubana, em 1959. Essa conjuntura se fecha com o início do ciclo de ditaduras militares, cujo marco definidor acontece no Brasil, em 1964. Desde então, nunca tantos povos se mobilizaram por uma mudança de rumos.

Embora auspiciosos, esses novos ventos têm uma fragilidade: ainda não conseguiram definir um programa alternativo. O governo Chávez, o mais avançado de todos, constrói seu projeto a quente, em numerosos enfrentamentos com a oligarquia e com a Casa Branca. Possivelmente o mesmo se dará com o governo Evo Morales. Como o Fórum Social, todos tateiam suas possibilidades em meio a uma conjuntura de imensa agressividade dos EUA. Mas contam a seu favor com o crescente sentimento antiimperial que contamina não apenas o FSM, mas crescentes contingentes populacionais ao sul do mundo.

A ponte que partiu
No caso venezuelano, as maiores ameaças à continuidade do processo não provêm agora de marchas ou boicotes oposicionistas. No domingo, esses setores promoveram uma passeata pelo centro da capital, com cerca de 30 mil participantes. Um número expressivo, mas nada comparável ao golpe de abril de 2002, ou ao locaute de dois meses ocorrido no final do mesmo ano. Com quatro canais de televisão e grande parte da mídia impressa na mão, além de dinheiro, muito dinheiro, e total liberdade de organização, a capacidade de mobilização oposicionista é bastante razoável.

O maior desafio do governo é representado pelo rompimento dos pilares de sustentação de um dos viadutos da via expressa de 40 quilômetros ligando o aeroporto internacional Simon Bolívar à capital. A região é pontuada por montanhas e vales e não existe rota alternativa em boas condições. O que há é uma velha estrada a serpentear a serra onde se localiza o bairro de Cátia, com curvas fechadas e passagens estreitas, que aumentaram a viagem dos usuais 30 minutos para um martírio que se estende para além de três horas.

O viaduto rompido condensa as tensões de um governo que venceu enfrentamentos políticos, erradicou o analfabetismo, colocou um médico em cada bairro, aumentou salários – o mínimo é de 180 dólares -, reduziu o desemprego e impulsiona o crescimento da economia para o recorde de 9,5% entre os emergentes, em 2005. Ao mesmo tempo, as administrações ligadas a Chávez mostram-se incompetentes para recolher regularmente o lixo das ruas, manter a iluminação pública funcionando a contento e cuidar de partes importantes da infra-estrutura de transportes. A situação é reconhecida por membros do governo. Tacitamente admitem que a chamada "revolução bolivariana" ainda não conseguiu democratizar e desobstruir importantes canais da gestão estatal responsáveis por áreas vitais.

Essas questões possivelmente terão influência nos debates deste Fórum. Não são apenas dezenas de milhares de ativistas que chegam a Caracas, mas é Caracas e a Venezuela que chegam ao Fórum, com seus avanços e impasses do dia a dia.

Estes movimentos contraditórios ainda não conformam "o extraordinário que se torna cotidiano", na feliz definição de revolução feita por Che Guevara. Mas certamente aumentarão a dose de realismo nas quase duas mil atividades que tomarão conta desta cidade caribenha até o próximo fim de semana, fazendo deste o mais político dos Fóruns..

* Gilberto Maringoni é jornalista, chargista e colaborador da Agência Carta Maior.

 

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Caracas: Um marco na história para a construção do socialismo

Por Francisvaldo Mendes* – 23/01/06

O Fórum Social Mundial em Caracas no ano de 2006 mostrará que uma nova perspectiva de luta se abre para o mundo e a construção de uma outra sociedade é possível, haja vista, a insatisfação que os povos têm demonstrado seja contra a invasão do Iraque pelos EUA ou elegendo líderes populares.

O projeto político neoliberal já deu mostras de esgotamento em todos os seus âmbitos. A recomendação do Banco Mundial por políticas compensatórias para amenizar as contradições sociais não tem sequer respondido às necessidades básicas da humanidade, pois o sistema capitalista, com a lógica de sugamento de pequenos capitalistas pelos grandes capitalistas - e conseqüentemente a exploração cada vez maior do povo - vem aumentando a exclusão social e as desagregações cada vez maiores dos trabalhadores e trabalhadoras.

A construção de alternativas socialistas e a perspectivas de luta dos trabalhadores e trabalhadoras se fortalece com as atitudes claras, objetivas e com vontade política de lideranças, organizações, governos e movimentos sociais que se colocam contra o projeto neoliberal, que seja anticapitalista e antiimperialista, enfrentando a cooptação ideológica que o projeto neoliberal causou nas mentes e corações de muitos militantes de esquerda.

O FSM de Caracas poderá aprofundar as experiências dos governos da América Latina e traçar uma contra-ofensiva, matando de vez o projeto neoliberal, seguindo a vontade dos povos de países como Cuba, Venezuela, Bolívia, Chile entre outros, onde a vontade política da população é contra a política imposta pelos EUA.

No dia 22 de janeiro de 2006, tomou posse na Bolívia um líder popular para a presidência, demonstrando que a eleição é um momento importante para questionarmos o projeto neoliberal, mas devemos ter claro que este instrumento é apenas uma bandeira das muitas que os movimentos sociais e os trabalhadores e trabalhadoras terão que levantar para derrubar o sistema capitalista.

A organização dos trabalhadores e trabalhadoras e sua constante mobilização são outro mecanismo de pressão para que representantes do povo não sejam cooptados dentro e fora das estruturas burguesas e o papel de dirigentes populares, sindicais e governos é a fomentação e agudização das contradições do sistema capitalista para que possamos mostrar ao povo que o esse modelo serve apenas aos capitalistas (Banqueiros, Agroindustriais, latifundiários, industriais etc.).

Portanto, o FSM de Caracas terá um papel fundamental diante da realidade que estamos vivendo em muitos países e dará a demonstração clara de quem realmente quer construir alternativas para a luta do povo, apresentando ao mundo a possibilidade de constituirmos sociedades livres e soberanas, enfrentando a política imperialista dos EUA e construindo a união dos trabalhadores e trabalhadoras na construção do socialismo.

* Francisvaldo Mendes é diretor executivo da CUT Nacional

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Razões da desigualdade no Brasil

Por Márcio Pochmann* - 03/10/05

Somente 5 mil clãs de famílias chegam a se apropriar de mais de 40% de toda a riqueza nacional, embora o país registre mais de 51 milhões de famílias. Como explicar tal situação que remonta à estabilidade secular no padrão excludente de repartição da renda e riqueza no Brasil?

A desigualdade na repartição da renda, riqueza e poder é uma marca inalienável do Brasil. De acordo com o "Atlas de exclusão social – Os ricos no Brasil" (Cortez, 2004), somente 5 mil clãs de famílias chegam a se apropriar de mais de 40% de toda a riqueza nacional, embora o país registre mais de 51 milhões de famílias. Se considerar somente a parcela da população que se concentra no décil mais rico, verifica-se que 75% de toda a riqueza contabilizada terminam sendo por ela absorvida. Em outras palavras, restam 25% da riqueza nacional a ser apropriada por 90% da população brasileira.

Concentração começa pelo poder

Esse descalabro em relação à concentração sem limites da riqueza no país não é algo recente. Pelo contrário, isso parece ser algo consolidado desde sempre no país, embora desde 1980, com o abandono do projeto de industrialização nacional, tem avançado no país o ciclo da financeirização da riqueza, com retorno ao modelo primário-exportador de matérias primas e produtos agropecuários. Da mesma forma que os ciclos econômicos anteriores, o padrão distributivo segue inalterado, a não ser pelo aprofundamento da desigualdade de renda e riqueza. Entre 1980 e 2000, por exemplo, quando o crescimento econômico foi pífio, praticamente dobrou em termos absolutos e relativos a quantidade de famílias ricas. Também se tornou geograficamente mais concentrada ainda a presença dos ricos no Brasil. Atualmente, somente quatro cidades respondem por quase oito a cada dez famílias ricas no Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte).

Como explicar tal situação que remonta à estabilidade secular no padrão excludente de repartição da renda e riqueza no Brasil? A resposta talvez deva ser encontrada na estabilidade do poder em mãos do conservadorismo das elites no país. Assim como a renda e a riqueza, o poder no Brasil encontra-se muito concentrado. Daí porque o país jamais ter vivido alguma experiência revolucionária. As insurreições existiram, mas foram, em geral, massacradas pelas forças do conservadorismo. Mesmo a revolução burguesa ocorreu desfigurada, sem que fosse inofensiva ao padrão excludente de repartição da riqueza e renda.

Ausência histórica de democracia

As reformas civilizatórias do capitalismo contemporâneo também deixaram de acontecer no Brasil. Assim, sem revoluções e sem reformas consideráveis, o padrão distributivo não seria modificado. A ausência de democracia consolidada parece ser a grande razão do conservadorismo e da concentração do poder. Dos mais de cinco séculos de existência, o Brasil não tem 50 anos de regime democrático.

É claro que não se pode chamar de democracia o que ocorria durante a fase imperial do século 19 e a República Velha (1889 a 1930). Tratava-se de um regime censitário, capaz de disponibilizar o voto tão somente para a população masculina que tinha posses e renda, compreendendo cerca de 5% da população. Deve ser lembrado ainda que as eleições não eram secretas.

Somente a partir da década de 1930 é que o Brasil avançou par consolidar o voto secreto e universal, mesmo que deixando de fora a população analfabeta. Mas a partir daí tiveram o Estado Novo (1937-45) e o regime militar (1964-85), justamente quando se definiu o novo pacto de poder favorável à industrialização (década de 1930) e quando o país registrou as maiores taxas de crescimento da renda (milagre econômico entre 1968 e 1973).

Quando o autoritarismo predominou, os ricos foram beneficiados, mantendo inalterado o padrão distributivo excludente no país. Os apelos populares e progressistas do povo em favor da melhor repartição dos frutos do crescimento econômico ficaram de fora do núcleo de poder. Durante os períodos democráticos, mantiveram-se altas as demandas reprimidas pelas fases autoritárias, especialmente num ambiente de enorme heterogeneidade social e geográfica. As convergências necessárias para o desenvolvimento de um projeto revolucionário ou mesmo de natureza reformista ficaram subsumidas na administração das emergências e no congraçamento de articulações políticas entre distintos extratos de classe sociais, muitas vezes necessárias à governabilidade.

Políticas públicas a meio caminho

Por conta disso, o encaminhamento das questões referentes à alteração do padrão distributivo ficou em segundo plano. Também o bloqueio que emerge na priorização das ações de governo a serem realizadas termina direcionando a tarefas de curto prazo, incapazes de alterar a estrutura de concentração dos agregados de renda e riqueza no país. Da mesma forma, a concentração do poder econômico e político impõe obstáculos profundos na gestão o país. O reacionarismo das elites que concentram o poder tem inviabilizado a concretização de reformas num ambiente democrático.

Na ausência de revolução e reformas, geralmente obstadas pelo conservadorismo, as políticas públicas ficaram pelo meio do caminho. Os gastos públicos nas áreas sociais já são significativos, ainda que não suficientes para repararem a herança do padrão excludente de repartição da renda nacional. Mas seus resultados demonstram a importância para evitar um maior aprofundamento da desigualdade de renda. No entanto, apresentam-se insuficientes até o momento para modificar a estrutura secular da má repartição da riqueza.

Assim, a composição fundiária segue muito concentrada. A estrutura tributária permanece regressiva, com a população pobre pagando mais impostos e os ricos quase que incólumes, enquanto a estrutura social se mantém distante das possibilidades governamentais de garantir a universalidade e qualidade necessária dos bens, serviços e equipamentos sociais básicos para toda a população.

O que o Banco Mundial não vê

Como se pode observar, há razões de ordem estruturais para obstaculizar a alteração considerável da distribuição da renda e riqueza no Brasil. Mesmo assim, o Banco Mundial parece desconhecê-las, ou mesmo desprezá-las quando se propôs, recentemente, a analisar as causas da desigualdade nacional, tendo identificado o déficit educacional como medida a ser enfrentada fundamentalmente. Ora, a educação é apenas parte de um processo muito mais amplo, sendo necessária ampliação dos investimentos, porém não suficiente para modificar a desigualdade de renda e riqueza.

Para aqueles que acreditam nas hipóteses da teoria do capital humano bastaria apenas e tão somente analisar a situação do desemprego entre os brasileiros ricos e pobres, para saber que nas condições atuais da economia nacional, quanto mais os pobres estudam maior tem sido a possibilidade do desemprego, uma vez que crescem as colocações de mão-de-obra por meio das relações sociais e pessoais num país de enorme excedente de força de trabalho.

A universalização da educação, em todos os níveis no Brasil, deve ser uma meta a ser alcançada mais rápida possível, sem que isso represente uma panacéia em termos de combate à desigualdade social. Suas causas são mais profundas e requerem mudanças estruturais, que somente a organização popular poderá levar a sua realização.

* Márcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.

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O estrago que a índia da Rede Globo faz

Por Florêncio Vaz* – 23/08/05

Justo nesse novo momento para os povos indígenas na América Latina - que já nos trouxe Rigoberta Menchu como Prêmio Nobel e que pode levar ainda Evo Morales à presidência da República na Bolívia - ela apareceu para estragar a festa. No Brasil, quando as organizações indígenas dos vários povos se mobilizam para reconquistar as terras perdidas e exigir direitos constitucionais, quando a imagem negativa dos índios como "selvagens" começa a se dissipar e muitas pessoas perdem a vergonha de se assumir abertamente como indígenas, a "Índia" da novela da Globo vem mostrar que ainda não estamos no século XXI. Por mais que a caricatura apresentada na novela "A Lua me disse" nada tenha a ver com a realidade atual de uma mulher índia, ela diz muito do que alguns setores da sociedade brasileira pensam sobre os povos indígenas, e joga na lama todo um trabalho de quem quer construir um Brasil plural, onde diferenças raciais e étnicas não sejam empecilho para uma convivência respeitosa e igualitária.

Desde que entrou no ar, a novela de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa vem causando risadas e protestos devido à forma como a personagem "Índia" é apresentada na trama. Divertida e risível, ela também é sempre humilhada, chamada de "preguiçosa" e ridicularizada na casa da família onde trabalha. Fala o português gramaticalmente errado, com o verbo na terceira pessoa, como nos filmes de westerns de Hollywood: "índia quer, índia gostar...", além de falar uma língua que ninguém entende. E mais, ela se mostra uma índia "tarada" correndo atrás dos homens pela casa, gritando: "índia quando quer homem fica nua na taba, índia gosta de ver homem nu, índia quer". Risada geral.

Palmas para o trabalho da atriz paraense Bumba, de Belém do Pará, que se diz filha de índios e que traz no semblante os traços marcantes dos seus ancestrais. Esta respeitável e alegre senhora de 7 filhos e 27 netos é uma artista consagrada. Estreando em novelas na Globo, ela já trabalhou na mini-série "A Muralha" e nos longa metragens "Brincando nos Campos do Senhor" de Hector Babenco e "O Curandeiro da Selva", gravado no México, com o galã Sean Connery. Foi em uma entrevista no Jô Soares que Miguel Falabella a descobriu e decidiu levá-la para o tal papel. O problema não é com Bumba e nem com seu reconhecido talento, mas sim com a personagem que ela encarna.

No começo de maio foi amplamente divulgada uma carta de repúdio de entidades do Mato Grosso protestando contra o modo como a "índia" era tratada na novela, que significava um desrespeito com os povos indígenas e reativava uma visão pejorativa que eles lutam para superar. Enquanto a carta, que teria sido entregue no Congresso Nacional e mandada para a TV Globo, circulava em jornais impressos e na internet, por todo o país aumentava o descontentamento de índios e não-índios.

Outras manifestações se seguiram, como um documento escrito pelo casal de vereadores Panderewup Zoró e Lígia Neiva, representantes dos indígenas em Rondolândia (MT), durante um curso de magistério para professores indígenas. O município é região de tensos confrontos com os "brancos", devido à luta pela terra. Os Nambiquara ali presentes solicitaram informações a respeito do uso indevido e preconceituoso da imagem do seu povo na TV. Após as explicações e discussões, ficaram revoltados e indignados. Os índios prometeram fazer as suas reivindicações por meio da Associação Indígena. Os vereadores, junto com os assessores, elaboraram a sua carta na mesma hora.

No documento eles falam da surpresa em saber que no portal da FUNAI "não vimos nenhuma manifestação deste órgão de proteção e defesa do direito do povos indígenas, quanto ao desrespeito, preconceito e uso indevido da "imagem" dos índios, demonstrados claramente na novela de Miguel Falabela, "A Lua Me Disse", quando uma indígena atriz do Pará que não é da etnia Nambiquara é chamada de "Nambiquara", colocando para todo Brasil uma distorção da imagem da mulher indígena". Eles pedem uma resposta do órgão indigenista, sobre que medidas estariam sendo tomadas, para saber "se esta novela vai continuar assim" e "se a Globo vai se retratar em público sobre o malefício que trouxe aos Nambiquara e às demais mulheres indígenas".

Depois de discordar da imagem de submissão da mulher indígena mostrada na novela, eles perguntam: "Será que o que a Globo vem mostrando servirá de incentivo para as mulheres indígenas continuarem suas lutas? Ou, será que elas se sentirão as selvagens, preguiçosas, taradas etc., ao andarem pelas ruas e serem vistas desta forma? Quem responderá pela discriminação racial, constrangimento, preconceito ocasionado pela repercussão e imagem da mulher indígena que ficará na cabeça dos brasileiros, que toda vez que virem uma índia na rua vão ligar a sua imagem com a índia Nambiquara da novela? Quem indenizará as mulheres e a etnia Nambiquara pelos danos morais que estão sofrendo?" É um profunda análise, envolvendo elementos de ordem ética, psicológica e jurídica, e uma séria cobrança aos responsáveis pela veiculação da novela e ao inoperante órgão indigenista oficial que, aliás, nem respondeu aos autores.

A direção da TV Globo já recebeu recomendação do Ministério Público Federal (MPF) para que mudasse a imagem da personagem ao longo da novela, de forma que a "índia" não aparecesse mais em situações humilhantes, como as que provocaram as reações de revolta das entidades. O MPF está aguardando resposta do departamento jurídico da emissora, que não quis se manifestar oficialmente quando da divulgação dos protestos. Mas talvez os resultados da pressão já estejam aparecendo bem lentamente. Nos últimos capítulos da novela, "Índia" tem se vingado das madames que mais a humilhavam, sem deixar de ser engraçada, como quando serviu pimenta malagueta na sopa e se divertiu enquanto as patroas corriam para beber água. Mas isso não corrige um problema maior. Além do mais, o estrago já está feito.

Para quem vê a polêmica distante do ponto de vista dos indígenas, pode parecer mais um caso da moda do politicamente correto. A própria Bumba, revoltada com as manifestações contrárias à sua personagem, teria desabafado: "Tem tanto índio morrendo de fome e eles se preocupando comigo que estou trabalhando. Queria que existissem milhões de Falabellas para dar emprego aos índios". A preocupação pró-indígenas procede e muito. Para o advogado e indigenista Carlos Eduardo Chaves, "este tipo de novela da Globo é um dos maiores desserviços prestados pela televisão ao povo brasileiro, moldando padrões éticos e estéticos deturpados. É uma influência verdadeiramente nefasta na cabeça de um povo tão carente de cultura e educação". Quanto aos empregos para índios nas novelas, a revolta é exatamente contra este tipo de "papel" que o autor oferece aos índios e que eles demonstram recusar.

É bom lembrar que a emissora é reincidente nesse tipo de tratamento à imagem dos indígenas. Em 2000, a novela "Uga Uga", de Carlos Lombardi, mostrava uma aldeia que era visitada freqüentemente pelos homens "brancos", por quem as mulheres "índias" estavam sempre esperando semi-nuas para se entregarem aos prazeres selvagens da carne. Eram as antepassadas taradas da personagem de Bumba. Na época, os índios ficaram muito incomodados e a Comissão Pós-Conferência Indígena, criada depois da Marcha e Conferência Indígena de Coroa Vermelha (BA), enviou uma carta de protesto à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, repudiando as cenas que deturpavam e estereotipavam as culturas indígenas. Conforme o documento, os indígenas são apresentados como povos "sem capacidade, animais de atração de um circo usados para chamar a atenção dos telespectadores daquela emissora". Afirmavam ainda que "a novela abre caminho para os não-índios se relacionarem de forma preconceituosa com os povos indígenas". Isso em 2000. E nem falamos dos "índios" caricatos dos programas cômicos.

Para as famílias mais pobres, com pouco acesso à leitura de jornais e revistas, a televisão e as novelas em particular são as principais fontes de "informação" e as maiores formadoras de opinião. Então, não é exagero dizer que essas pessoas estão sendo levadas a reforçar ou a desenvolver uma deturpada idéia sobre os indígenas, ligada a atraso, ridículo, preguiçoso, erótico-exótico etc. "Uga Uga" foi vendida aos Estados Unidos e muitos outros países, onde também fez bastante sucesso. "A Lua me disse" já estaria sendo exibida em Portugal e logo deverá ganhar o mundo. Sabemos que parte das idéias que as pessoas fora do Brasil fazem da nossa gente e nossa cultura é moldada nessas novelas. Qual será a imagem que terão sobre os índios no Brasil? E não vale dizer que é só uma paródia, e que as pessoas sabem que é brincadeira.

O perigo é que através de estórias engraçadas e do humor aparentemente inofensivo são passados estereótipos depreciativos e altamente racistas. As piadas sobre "pretos" são um exemplo claro disso. As piadas não são apenas piadas. No caso que estamos discutindo, podemos apontar e denunciar alguns dos estereótipos mais nocivos à imagem dos indígenas.

De início, a personagem de Bumba é desprovida de nome próprio, ela é apenas "Índia" genérica, sem história própria e sem ligação com o seu povo. É como se ela não precisasse dessas referências. Quando citam o seu povo, é de forma ofensiva: "sua Nambiquara!" Como se ter uma identidade étnica específica fosse vergonhoso. Sinal dessa lacuna identitária é o fato de ela dizer que mora numa "taba", palavra que não é usada por nenhum povo atualmente. Só falta dizer que adora o sol e a lua, e é avó de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Ou seja, é uma índia que não existe no tempo presente, só em um fantasioso passado mítico nacional. Muito mais provável historicamente, por exemplo, seria admitir que ela sobreviveu quando seu povo foi massacrado na construção da Transamazônica nos anos 70 ou que ela foi obrigada a abandonar sua família Guarani-Kaiowa no MS, e procurar emprego na cidade, devido à miséria e a falta de terra. Mas isso já seria realista demais.

"Índia" tem uma língua ininteligível que os "civilizados" da cidade não compreendem. A sua "língua indígena" só serve para fazer rir, por ser exótica e remeter mais ainda ao papel de "selvagem", bem próximo dos animais, cujos grunhidos e latidos os humanos não entendem. Os brancos não precisam se preocupar em aprender a língua indígena, pois é a índia que tem que falar a língua da metrópole, ela é que precisa se civilizar. Mas na escala evolutiva, ela parece estar longe disso. Fala português errado e em frases curtas e grosseiras, como se fosse incapaz de exprimir um raciocínio mais elaborado e reflexivo.

Não sendo uma "civilizada", uma pessoa como as outras, "Índia" não tem uma vida afetiva normal. Ela não tem sentimentos, tem apenas instintos, e o desejo irrefreável de sexo. É uma tarada, desequilibrada. Novamente jogada para junto dos animais. Por isso não tem e nem pode ter um namorado, "índia quer homem nu" apenas. Joel Zito Araújo, no livro "A Negação do Brasil: o Negro na Telenovela Brasileira", mostra como os personagens negros na TV dos anos 60 e 70 também não tinham uma vida amorosa normal, além de serem geralmente subalternos, malandros ou empregadas domésticas. As mulheres eram sempre as mulatas sedutoras. Zezé Mota, por exemplo, estreou como doméstica em "Beto Rockfeller". Sobre os homens, veja só: Pelé, na novela "Os Estranhos", quase na falava e não se apaixonou por ninguém. Muito estranho mesmo, mas compreensível.

Como os personagens negros de novela agora compõem famílias de classe média, namoram normalmente e até estão entre os papéis principais, será uma tendência que as "índias" passem a ser as domésticas da estória? Existem índias advogadas, professoras, enfermeiras, escritoras e domésticas, entre outras. Por que escolher para retratar justo a doméstica? Porque isso está em sintonia com o estereótipo de que o índio ocupa na sociedade brasileira o degrau mais baixo. Exemplo eloqüente: no portal da Rede Globo (acesso em 19/08/2005), sobre a novela, na lista dos personagens por ordem alfabética, vai-se de Adail a Zé Bisonho, depois do qual vem, em último lugar, a nossa "Índia". Subverte-se o alfabeto, mas não a "estrutura" da sociedade.

E hoje, com a radicalização das reivindicações indígenas, com índios entrando nas universidades através das cotas e querendo participar mais na sociedade brasileira, seria a hora de mostrar a eles o seu lugar na hierarquia social. Cabem a eles, portanto, os trabalhos que os "brancos" não querem fazer. Então, é preciso tirar a humanidade e a dignidade da "Índia" para melhor dominar e excluir os índios. Não estamos discriminando as domésticas como categoria profissional, mas não concordamos que esta ocupação seja colocada como "o" lugar de índios ou negros.

Com essa visão de índio mostrada de forma estereotipada e racista na TV, os mais atingidos negativamente são as crianças e os jovens indígenas que ainda não tem firme a auto-estima da sua identidade étnica. Pesquisas mostram que uma consciência étnica ou racial começa a surgir desde a infância. Se as crianças são expostas a situações em que sua raça e seus costumes são mostrados de forma negativa, elas também tenderão a desenvolver uma "identidade negativa" de si e do seu grupo, que se prolongará na juventude e, se continuar sendo alimentada, por toda a vida. Por isso os índios perguntaram: como nossas mulheres vão se sentir orgulhosas da sua indianidade quando escutam piadas comparando-as com a "índia" tarada da televisão? É claro que a imagem de índio que a novela divulga tem conseqüências altamente desestruturadoras na mente da população indígena. E milhares de índios que vivem anônimos nas áreas urbanas podem continuar escondendo sua identidade étnica para escapar de mais discriminação.

As reações dos próprios índios e de outros setores da sociedade brasileira mostraram firmeza em repudiar este tipo de abuso. Mas de concreto o que está sendo feito? Primeiro, tornar a indignação pública já é algo concreto, é um gesto político. O silêncio chega a ser conivência. E como as entidades também encaminharam seus protestos aos órgãos competentes, temos a impressão que desta vez a TV Globo vai levar mais a sério a opinião da sociedade e a força da Lei, admitindo que não pode ridicularizar ou humilhar sempre toda um povo impunemente, como se ela fosse o próprio Direito.

O Ministério Público Federal já está trabalhando nesta matéria a partir da representação dos indígenas e das outras entidades. Na Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro, tramita um Procedimento Administrativo sobre a questão, que será um dos pontos de pauta da Audiência Pública que vai discutir "Programação de TV e Cidadania", no dia 24 de agosto próximo naquela capital. Será um espaço privilegiado para os cidadãos índios e não-índios, entidades e os Procuradores afirmarem diante das emissoras de TV que o direito e a dignidade da pessoa humana estão acima do preconceito e do lucro fácil. E que essas emissoras têm um papel importantíssimo na verdadeira educação dos brasileiros, uma educação para a tolerância e o respeito diante do "outro".

* Florêncio Vaz, do povo indígena Maytapu/PA, é frade e ativista do movimento indígena da Amazônia. É formado em Ciências Sociais, mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ, professor de Sociologia na UFPA e doutorando em Ciências Sociais/Antropologia na UFBA (e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.).

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Médicos para o povo

 

Por Emir Sader* – 23/08/05

Em cerimônia – não noticiada pela imprensa brasileira – formou-se a primeira geração de médicos da Escola Latino-americana de Medicina (ELAM), no Teatro Karl Marx, em Havana, na presença dos presidentes de Cuba, da Venezuela e do Panamá.

São 1.600 médicos, de 28 países, formados no país que tem a melhor medicina pública do mundo, atestada pelos extraordinários índices de saúde do povo cubano. Foram formados de forma totalmente gratuita, em um curso de 6 anos, que incluiu a prática de medicina nas regiões pobres dos seus paises de origem. A idade média dos formados é 26 anos.

70% desses médicos são diretamente originários de famílias pobres, 46% são mulheres, vários deles são filhos ou netos de desaparecidos políticos de países como o Chile, a Argentina e o Uruguai.

Seguem estudando na Escola Latino-americana de Medicina 12.000 alunos, dos quais 5.500 são da América do Sul, 3.244 da América Central, 1.039 do Caribe, 489 do México e dos Estados Unidos, 42 da África e do Oriente Médio, 61 da Ásia, 2 da Europa. 64 são de povos indígenas da América Latina.

Esse exemplo extraordinário de solidariedade permite que se forme a primeira geração de médicos pobres, que trabalharão na saúde pública dos seus países, não buscarão lucros abrindo consultórios para tender a clientela rica – que já dispõe de suficientes médicos particulares e convênios particulares de saúde à sua disposição. O projeto passou a fazer parte da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), um projeto de integração baseado na solidariedade e na generosidade, como um exemplo vivo do humanismo contemporâneo.

O Brasil se beneficia desse projeto e os médicos formados na Escola Latino-americana de Medicina tem que ser recebidos e inseridos na nossa sociedade – tão carente de melhoria do atendimento de saúde da grande maioria -, para estar minimamente à altura dos gestos generosos que nos propiciam ter essa primeira geração brasileira de médicos pobres, voltados para a atenção aos pobres.

* Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de "A vingança da História".

 

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Previdência e inclusão social

Por Vilson Romero* - 09/08/05

A expressão "trabalho informal" consolida-se no início da década de 70, a partir de estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre as condições de trabalho em países africanos, onde grande contingente de trabalhadores vivia e agia à margem da lei sem quaisquer formas de proteção social ou regulação do Estado.

A formalização das relações de trabalho com definição de tarefas e de contraprestação salarial surgiu a partir do século XVIII, com o incremento do processo industrial, até chegarmos ao início do século XX, quando foi instituído o contrato de trabalho, inserindo expressamente direitos e deveres na relação patrão-empregado. As mudanças impulsionadas pela tecnologia e oneração excessiva da mão-de-obra colaboraram para que, no início deste século XXI, uma parcela expressiva da população mundial estivesse à sombra da inclusão social, na chamada economia marginal ou subterrânea.

No Brasil, o Banco Mundial revela que 39,8% do Produto Interno Bruto (PIB) é informal. Mas os números e comparações não param aí. Em recente pesquisa sobre economia informal urbana, o IBGE conclui que um quarto dos brasileiros ocupados em atividades não-agrícolas está envolvido com negócios informais, resultando em mais de 13 milhões de brasileiros no chamado "Brasil subterrâneo", população que supera em 30% o total de habitantes, por exemplo, de Portugal (10,56 milhões).

Um outro número resultante da Pesquisa de Mercado e Emprego do Ministério do Trabalho põe mais lenha na conta da economia excluída: há 43,03 milhões de brasileiros, ou seja, 55% da população ocupada, à margem da chamada "proteção" previdenciária. Destes, 16 milhões possuem renda maior do que um salário mínimo.

Inúmeros fatores podem ser citados como responsáveis por este quadro de exclusão social. O custo da formalização do emprego, que envolve obrigações sociais (INSS, FGTS, RAT, etc...) num montante superior a 35% do salário nominal, acrescido dos direitos trabalhistas (férias, repouso remunerado, 13º salário, etc...) responsáveis por mais 40%, assustam o empresário que pretende "assinar" a carteira de trabalho.

Além disto, há um universo de mais de 900 mil cidadãos que trabalham na via pública, como camelôs, vendedores de lanches, de fichas de transporte coletivo, de balas e frutas, entre outros. Acresçam-se os 3,8 milhões de empregados domésticos sem proteção social, por falta de formalização ou de condições para arcar com contribuições que levam 1/5 do seu salário e teremos aos poucos um retrato dramático das condições de trabalho do brasileiro.

Minimizando este retrato preocupante e colaborando, em parte, para aumentar os indicadores de inclusão social, duas recentes providências legislativas devem ser contabilizadas.

Na votação da Medida Provisória 242, recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados e agora em tramitação no Senado Federal, foi inserido artigo criando o sistema especial de inclusão previdenciária, já determinado na Emenda Constitucional nº. 40. Pelo dispositivo, que ainda deve ser aprovado em nova votação, abre-se a possibilidade de o trabalhador autônomo ingressar na previdência social pública pagando contribuição de 11% sobre o salário mínimo, ao invés dos 20% pagos hoje em dia. Em síntese, permite reduzir o desembolso mensal de R$ 60,00 para R$ 33,00, o que, para quem ganha salário mínimo, é muito...

O legislador, nesta MP, acrescenta o § 2º ao artigo 21 da Lei 8.212, passando a determinar que "é de onze por cento sobre o valor correspondente ao limite mínimo mensal do salário-de-contribuição a alíquota de contribuição do segurado contribuinte individual, que trabalhe por conta própria, sem relação de trabalho com empresa ou equiparado, e do segurado facultativo que optarem pela exclusão do direito ao benefício de aposentadoria por tempo de contribuição".

A outra novidade resulta da possibilidade surgida na Emenda Constitucional nº 47, chamada PEC paralela, que foi promulgada em 5 de julho e publicada no Diário Oficial em 6 de julho deste ano. No artigo 201 da Constituição Federal, o parágrafo 12 passou a ter a seguinte redação: "Lei disporá sobre sistema especial de inclusão previdenciária para atender a trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencentes a famílias de baixa renda, garantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a um salário-mínimo". Adiante, o parágrafo 13 do mesmo artigo realça que o tal sistema de inclusão "terá alíquota e carências inferiores às vigentes para os demais segurados do regime geral de previdência social".

Por mais que sejam providências que, na prática, não tenham sustentação atuarial, já que a primeira prevê contribuição de 11% e a outra permita aposentadoria a quem, nos termos da lei, com certeza, pouco contribuirá, são medidas que aproximam os trabalhadores do sistema oficial de previdência.

Tomara não sejam medidas que daqui a uma década ou uma década e meia revelem-se como fulcrais para a definitiva falência do regime público de previdência, cujo desequilíbrio, em 2005, já supera os R$ 30 bilhões, deixando em alerta administradores e governo.

* Vilson Romero é jornalista, administrador público, conselheiro e coordenador do Departamento de Direitos Sociais e Imprensa Livre da Associação Riograndense de Imprensa e consultor da Fundação Anfip de Seguridade Social – e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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Projeto 1+2: Uma Terra e Duas Águas

Por Roberto Malvezzi, Gogó * - 18/07/05

O semi-árido brasileiro possui uma população rural estimada em aproximadamente 2,2 milhões de famílias, aproximadamente 9 milhões de pessoas. Agora, com a inclusão oficial de municípios do norte de Minas, o número cresceu muito mais. É a região brasileira mais rural.

Essa população está espalhada por uma área de aproximadamente 850 mil quilômetros quadrados, que agora passa também para aproximadamente 960 mil quilômetros quadrados com a inclusão do norte de Minas. É a população brasileira mais excluída de saneamento ambiental (abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, contenção de vetores, etc). É também a que apresenta os menores índices de desenvolvimento humano do país (IDH).  É a população retirante retratada nas músicas de Luís Gonzaga, nas pinturas de Portinari, nos romances de Graciliano Ramos e na poesia de João Cabral de Mello Neto. Sem infra-estrutura para enfrentar o clima do semi-árido é a que mais sofre com os efeitos do clima, a que mais migra, a que mais morre.

Para essa população a ASA (Articulação do Semi-Árido) está propondo o projeto "Uma Terra e Duas Águas (1+2). O projeto tem inspiração no projeto aplicado na região semi-árida da China, o chinês "1-2-1". Ele visa proporcionar a cada família do semi-árido uma área de terra suficiente para viver com dignidade; uma água para abastecimento humano (cisterna caseira) e uma segunda água para produção agropecuária, conforme a vocação de cada micro região dentro do semi-árido. Assim como na China, o projeto pressupõe a reforma agrária e a construção de uma malha de pequenas obras hídricas para captação de água de chuva. Assim a China já resolveu o problema básico de 2 milhões de famílias de seu semi-árido - dando a cada família 0,6 hectares de terra, uma água no pé da casa e outra na roça, além de uma área de captação na roça - e já irriga com água de chuva aproximadamente 200 mil hectares. Claro, há aí a decisão de um governo central forte e uma cultura chinesa do "cuidado" milenar. Cada roça nas mãos de um chinês é um jardim.

O semi-árido brasileiro é menor que o da China - 1.800 mil Km² lá -, tem uma população relativamente menor (20 milhões aqui e 90 milhões lá) e uma pluviosidade média maior aqui que na China (750 mm/ano aqui e 500 mm/ano em média lá). Portanto, é perfeitamente possível construir essa malha hídrica, multiplicando aos milhões essas pequenas obras e assim beneficiar a família onde ela mora. No conjunto é uma obra gigantesca, mas desconcentrada. O projeto é sustentável econômica, ambiental e socialmente. Ele empodera exatamente a população mais sujeita aos caprichos da elite política nordestina. A captação de água de chuva no pé da casa e na roça já é também sua distribuição. Portanto, o projeto dispensa obras hídricas gigantescas, de alcance espacial e social extremamente limitado, além de concentradoras da terra e da água. Com 1/3 da água de chuva que cai sobre o semi-árido todos os anos (750 bilhões de m³), Aldo Rebouças estima que poderiam ser irrigados 2 milhões de hectares de terras.

A concepção do 1+2 é antagônica à da Transposição do São Francisco. O 1+2 segue uma concepção de harmonia com a natureza, leva a sério a "crise planetária da água", enquanto a transposição segue uma concepção de mais de um século anterior à crise da água contemporânea. O 1+2 desconcentra terra e água, enquanto a transposição concentra. Aumenta oferta hídrica captando mais água de chuva e evitando a evaporação, enquanto a transposição apenas transfere água de uma bacia para outra. Atinge a população difusa, a que mais passa sede hoje, enquanto a transposição leva água para os grandes açudes do Nordeste setentrional já abastecidos com muita água. Não impacta o ambiente e coopera com a natureza, enquanto a transposição agride o São Francisco e suscita enormes dúvidas quanto à salinização de solos e o aumento no desperdício de água. Enfim, o 1+2 é o símbolo do princípio do cuidado com a natureza, do respeito e da cooperação com o ambiente. A Transposição representa o atraso, o consumo de água em expansão, a incompreensão dos limites da natureza, o desperdício, o hidronegócio mesclado com a indústria da seca.

Para oferecer essa segurança alimentar e hídrica mínima à população do semi-árido é preciso, além da reforma agrária, uma malha hídrica de aproximadamente 6,6 milhões de pequenas obras: duas cisternas no pé da casa para consumo humano, sendo uma usual e outra de segurança (4,4 milhões ao todo); mais 2,2 milhões de obras (cisternas, barragens subterrâneas, caxios, etc) para reter água para uso agropecuário. O custo desse projeto hoje, sem levar em consideração o custo da reforma agrária, seria de aproximadamente R$ 8 bilhões. Hoje a ASA trabalha com apenas uma cisterna no pé da casa visando atingir apenas 1 milhão de famílias. É um número forte, simbólico, mas não expressa toda a demanda real.

Essas obras têm que ser inteligentes e impedir o fator mais drástico para retenção de água no semi-árido, isto é, a evaporação. Portanto, à semelhança das cisternas para consumo humano, também é necessário evitar a evaporação da água nas obras para uso agropecuário, exigindo que elas sejam vedadas. Experimentalmente várias tecnologias já foram testadas e aprovadas em diversos pontos do semi-árido.

Esse projeto será uma revolução no semi-árido. Oferecerá segurança alimentar e hídrica a todas às famílias que hoje vivem espalhadas pela caatinga. Além do mais, oferecerá cidadania e liberdade política.

Esse é um desafio histórico. Não há mágica, depende da luta social e da capacidade de dar um passo a cada dia. É um desafio para todo o povo brasileiro, principalmente para a ASA que o propõe, para os próximos vinte anos.

* Roberto Malvezzi, Gogó é Coordenador Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

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