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Agência de Notícias

Enfim, o nepotismo começa a naufragar

Por Madalena Nunes* – 16/03/06

Não foi uma luta fácil. Conseguir a proibição concreta do nepotismo no Judiciário é o resultado de décadas de lutas e ações da organização sindical no Poder Judiciário e demais organizações sociais, que muito fizeram para conquistar essa vitória.

Foram muitas campanhas de esclarecimento do que significa nepotismo e dos prejuízos que essa prática traz ao serviço público; Foram muitas denúncias da imoralidade que representa o nepotismo dentro do Poder Público; Foram muitas ações políticas e mesmo judiciais buscando o resgate da justiça contra a prática do nepotismo. Foi uma batalha gigante, em todo país. Até porque é gigante a causa, pois significa a contestação contra a prática arraigada de favorecimento familiar e parentesco por parte de quem detém o poder.

Dentro do Judiciário essa prática é comum e considerada natural pela maioria dos juízes e desembargadores. Mas não pelas servidoras e servidores concursados, aviltados nos seus direitos e ainda obrigados a executar tarefas daqueles que muitas vezes sequer compareciam ao local de trabalho, pois bastava serem parentes de magistrados para terem direitos a significativos salários e outros benefícios.

Nesse caso, natural é a indignação. E esta não se acomodou, antes, reagiu e resistiu de todas as formas, onde o movimento sindical no judiciário exerceu um papel fundamental, não se intimidando diante das ameaças e perseguições. O tacão foi pesado.  Militantes sindicais que assumiram o desafio de lutar e denunciar a prática do nepotismo perseguidos, transferidos para outras localidades, tiveram seus salários reduzidos, não recebiam promoções, enfim, sofreram retaliações e discriminações de todas as formas.

Mas isso não é tudo. Insatisfeitos com as perseguições e discriminações, alguns juízes presidentes de tribunais sem justificativas junto à sociedade de suas práticas nepotistas, demonstraram sua força de poder demitindo sumariamente militantes sindicais. É importante aqui registrar dois casos arbitrários de demissões, emblemáticos nas perseguições a militantes sindicais que ousaram lutar pelo fim do nepotismo: Moisés Szmer Pereira, que teve sua aposentadoria cassada em 1994, felizmente, hoje revertido aos quadros do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro e Paulo Roberto Rios Ribeiro, exonerado também sumariamente do Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão em 1995, e mesmo depois de dez anos, com inúmeras ações judiciais e políticas no sentido de reverter sua exoneração, implementadas pelo movimento sindical através dos Sindicatos do Judiciário e da Federação Nacional dos Trabalhadores no Judiciário Federal e Ministério Público da União, ainda permanece exonerado, numa demonstração de força dos detentores do poder e da prática do nepotismo no Judiciário.

Também não podemos deixar de citar o caso do Tribunal de Justiça do Piauí, quando em 1993, o Sindicato dos Servidores no Poder Judiciário do Piauí denunciou o chamado "três da alegria", onde vários parentes e amigos de desembargadores e juízes foram agraciados com promoções ou nomeações para cargos no TJ do Piauí.

Imediatamente após as denúncias, o presidente do tribunal suspendeu o recolhimento da contribuição sindical, obrigou servidores a se desfiliarem do sindicato e aos que ousaram resistir, restou a redução de 50% nos seus salários, contrariando, assim, a legislação brasileira, inclusive normas constitucionais, numa atitude autoritária e arbitrária de interferência e intervenção na organização sindical e de abuso de poder.

Isso é só uma amostra das perseguições e retaliações sofridas em nome da manutenção do nepotismo, mas existem inúmeros outros exemplos que o espaço não nos permite citar.

Mas "tudo vale a pena se a alma não é pequena". Hoje podemos comemorar um passo significativo rumo ao fim do nepotismo. Após a decisão do Supremo Tribunal Federal, que numa votação histórica no dia 16 de fevereiro de 2006, por 9 votos a 1,  manteve a Resolução de n° 7/2005, do Conselho Nacional de Justiça, vedando a contratação de parentes de magistrados até o terceiro grau, para cargos de chefia, direção e assessoramento no Poder Judiciário.

Essa medida não é a única que proíbe o nepotismo, existem inúmeras outras, inclusive os princípios constitucionais de impessoalidade e moralidade no serviço público. Mas com certeza é a que teve maior repercussão, até por que vivemos um momento propício para questionamentos dos desmandos do poder público, onde a sociedade não mais aceita práticas arcaicas e viciadas de apropriação do público pelo privado.

Nessa luta não caminhamos sozinhos, a postura de contestação do nepotismo por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, da Associação Nacional dos Magistrados, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, e muitas outras organizações sociais foi determinante para essa conquista.

Podemos comemorar o fim do nepotismo? Ainda não, visto que é uma constante no Poder Executivo e Legislativo. No Judiciário, o Brasil inteiro viu a reação de juizes e desembargadores negando-se a demitir seus parentes. Mas podemos dizer que o nepotismo começa a naufragar. Nós do Judiciário estamos em festa, pois tendo como aliado o "Guardião da Constituição", como é conhecido o Supremo Tribunal Federal, podemos dizer que o nepotismo sofreu um golpe fatal, pois não haveremos de permitir mais essa prática ainda que camuflada, seja direto ou na forma de troca de favores, conhecido como nepotismo cruzado.

Nesse sentido, não poderíamos deixar de parabenizar o Movimento Sindical no Judiciário, pioneiro nessa luta e que destemidamente foi em busca de aliados a fim de contribuir para um Judiciário justo, democrático e moralizado, com credibilidade social e sem a mácula do clientelismo e apadrinhamento, práticas que transformam a administração pública em negócios de natureza privada e familiar.

Com isso podemos acreditar que é possível avançar e garantir a proibição do nepotismo também no Executivo e Legislativo. Registramos que já existe em tramitação na Câmara dos Deputados uma lei que proíbe o nepotismo naquela instituição, onde devemos iniciar uma campanha pela sua aprovação e estender a proibição dessa prática em todo poder público, pois se é público, não se admite apropriação por quem quer que seja. Continuamos lutando para que o acesso ao serviço público seja exclusivamente através de concurso público, é esse o caminho para garantir um serviço público de qualidade e sem clientelismo.

Viva o fim do nepotismo! Viva a luta dos trabalhadores!

* Maria Madalena Nunes é servidora do Judiciário Federal, ex-diretora da Fenajufe e do Sintrajufe/PI, licenciada em História pela UESPI e diretora de Organização da Central Única dos Trabalhadores no Piauí.

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Indústria do cargo comissionado é que propicia nepotismo

Por Marcelo Semer* - 08/02/06

Desde que foi editada, em novembro, a republicana resolução antinepotismo do Conselho Nacional de Justiça vem sofrendo contínuos ataques dentro do Judiciário. Logo de cara, o Colégio de Corregedores-Gerais incitou seu descumprimento com um ambíguo chamado à resistência, espécie de desobediência civil "do andar de cima".

Os presidentes de tribunais de Justiça do país, a seu turno, pressionaram o CNJ para rever pontos da resolução, sob a sutil forma de pedido de esclarecimento, conseguindo, inclusive, abrandá-la. Agora são decisões judiciais que pipocam Brasil afora para impedir que as exonerações sejam realizadas até 14 de fevereiro, data-limite fixada pelo CNJ.

Para espancar de vez as dúvidas acerca da legalidade da resolução, melhor seria se o Supremo Tribunal Federal tivesse desde logo apreciado a questão quando interposta Ação Direta de Inconstitucionalidade. A ADI foi, no entanto, indeferida liminarmente por uma interpretação restritiva sobre legitimidade processual.

A decisão deu ensejo a uma multiplicidade de Mandados de Segurança a serem apreciados justamente pelas Justiças locais, mais refratárias à própria resolução, ainda que possa ser levantada controvérsia a respeito da competência, uma vez que os tribunais estariam apenas cumprindo uma determinação do CNJ, que, como "autoridade coatora", deslocaria o foro de julgamento para o Supremo. É o STF, aliás, o tribunal competente para processar e julgar, originariamente, todas as ações contra o CNJ, segundo dispõe o artigo 103, inciso I, alínea r, da Constituição Federal, na redação da Emenda 45 (reforma do Judiciário).

A reação, todavia, não é apenas jurídica, é política e cultural. Isso explica por que nenhuma providência foi tomada nos outros Poderes para a exoneração dos parentes de seus cargos, observando que a decisão do CNJ se baseou nos princípios da moralidade administrativa e impessoalidade, previstos na Constituição em vigor no país há 17 anos. O nepotismo, no entanto, é muito mais antigo. É herdeiro direto das capitanias hereditárias, com as quais o poder central distribuía o que era público de forma privada, como se fez por tantos e tantos anos com cartórios extrajudiciais, delegações do Estado que passavam de pai para filho.

A lógica de tratar a coisa pública como particular ainda persiste no preenchimento de cargos de livre provimento: este é o verdadeiro pai de todos os nepotismos. É a ampla liberdade concedida a administradores, legisladores e desembargadores para contratarem assessores e funcionários graduados sem concurso público, sob o argumento da confiança. Essa indústria do cargo comissionado é que propicia nepotismos e apadrinhamentos de todo o gênero, invertendo a lógica de excelência e isonomia que deve existir no recrutamento dos servidores.

Os juízes de primeira instância lidam com milhares de processos nos cartórios confiados à sua administração. Não contam com nenhum cargo de livre provimento. O escrivão, que prepara minutas de despachos, o escrevente, que digita termos de audiências e sentenças, ou os oficiais de Justiça, que executam decisões, todos são funcionários devidamente concursados. Por que os desembargadores precisam ter assessores comissionados que podem, e muitas vezes são, recrutados fora dos quadros do Tribunal? É neste cargo, na maioria dos estados, e em particular São Paulo é uma exceção, que se aloca boa parte dos parentes.

Há um vasto corpo técnico de assessores parlamentares no Congresso Nacional, especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento, aprovados em concurso público de extrema dificuldade. Por que necessitam os parlamentares de um exército de assessores de sua livre confiança, no mais das vezes amigos, parentes ou companheiros de partido derrotados? Quantos não são os casos em que estes cargos no Legislativo representam simplesmente uma forma travestida de incrementar os próprios salários de deputados e senadores? E no Executivo o fato é tão público quanto notório; cargos comissionados são historicamente objetos de negociação por apoios partidários. E mesmo os recentes escândalos políticos não foram capazes de diminuir a sua incidência na máquina federal.

O artigo 37, inciso V, da Constituição Federal, impõe a edição de lei disciplinando reserva mínima para cargos comissionados a servidores efetivos de carreira. Poucas foram as leis promulgadas nesse sentido para regulamentar a Constituição e menor ainda o interesse em cumpri-las. Recentemente, um juiz de Pernambuco decidiu que o Tribunal de Justiça do estado deveria afastar funcionários comissionados de fora da carreira contratados acima do porcentual previsto na lei local. A decisão foi cassada pelo próprio réu antes de ser cumprida.

A proliferação de cargos de livre nomeação subverte a ótica republicana no sentido de transferir a idéia pública de confiança (cargo demissível ad nutum) para a esfera privada (compadrio). Os cargos passam a servir como favorecimentos de toda espécie, além de criar a figura de servidores públicos que servem mais aos interesses de seus contratantes, de quem são devedores, do que propriamente ao Estado.

Para acabar com as várias espécies de nepotismo, andariam bem os senhores legisladores, senhores administradores, senhores desembargadores e senhores ministros se reduzissem o número dos servidores livremente contratados e aumentassem o espaço para os cargos destinados aos funcionários aprovados em concursos. Teríamos, assim, uma administração mais profissional e um serviço público mais transparente.

* Marcelo Semer é juiz de direito em São Paulo e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.

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A injustiça do nepotismo

Por Adilson Luiz Gonçalves* - 02/02/06

A prática de nomear parentes para cargos públicos é muito mais antiga que a definição da palavra nepotismo. A desculpa sempre foi: afinidade e lealdade pessoais, embora isso não garantisse, necessariamente, conduta ética e moral, perante o povo. Prova disso é que essa "afinidade" está, normalmente, associada a outros tipos de favorecimento, tais como: relevar incompetências, perdoar deslizes e, principalmente, afetar decisões.

Dependendo do status de quem nomeia, isso pode ter conseqüências desastrosas, que prejudicam a credibilidade de instituições que deveriam estar acima de qualquer suspeita. No caso de monarquias, ditaduras e empresas familiares o nepotismo é, até, compreensível; mas quando se trata de instituições públicas, em regimes democráticos, sobretudo no âmbito jurídico, ele é injustificável.

Não é esse tipo de "cegueira" que o povo espera da Justiça, e há várias razões para isso: uma delas é a natureza desse modelo de governo: igualdade para todos. Bem distante da adaptação oportunista suína, descrita por Orwell, em "A Revolução dos Bichos". Afinal, se o poder emana do povo, não pode ser exercido a sua revelia ou para o benefício de poucos. Utopia... Outra é a existência dos concursos públicos: se o parente é, de fato, competente, não terá problemas para conquistar a vaga num processo seletivo honesto.

Assim sendo, não há como sustentar essa prática nefasta, em qualquer área, ainda mais no Poder Judiciário. Afinal, aproveitar de uma tradição espúria, como se fora uma prerrogativa de cargo, ou direito adquirido, não se coaduna com a conduta ilibada que todo o magistrado deve demonstrar perante a sociedade. De fato, como alguém pode ser justo, quando se vale de injustiças para proveito próprio ou de parentes?

Infelizmente, o manto da justiça "cega" alguns, que perdem essa noção imprescindível de democracia. Estes, ofuscados pelo poder secular, sentam em seus "tronos", e se julgam infalíveis, imaculados e intocáveis. São implacáveis com os que julgam. Mas esquecem de todos esses rigores quando se trata de beneficiar seus interesses e afetos. Transformam em "patrimônio e tradição familiares" o que deveria ser acessível a todos, por competência e merecimento. Confundem organogramas funcionais com árvores genealógicas. Talvez pensem, data vênia: "Parente também é povo!". Só que nomeação arbitrária para cargos públicos não pode ser considerada como um mimo ou uma herança.

Felizmente, parecem ser pouquíssimos os adeptos desse expediente injusto.

Consciente dessa incongruência, moral e ética, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), emitiu, recentemente, uma resolução que proíbe o nepotismo no Poder Judiciário... Ora, viva! Que belíssimo exemplo esse, que dá força, inclusive, para que a opinião pública pressione os demais poderes a adotar o mesmo procedimento. Isso seria "justo, muito justo, aliás, justíssimo".

Surpresa. Juízes de vários Estados concederam liminares contra essa resolução. Alegaram que ela é inconstitucional.

Será que o CNJ desconsiderou a Carta Magna? Será que as leis brasileiras são, propositalmente, ambíguas? Será, então, que o nepotismo é constitucional? Se for, está ferido o maior de todos os preceitos da Constituição: o da igualdade.

Infelizmente, não há júri popular para dar veredicto, nesses casos; como não há plebiscitos, quando o assunto é criação de impostos, aumento de alíquotas ou da remuneração de nossos representantes no Executivo, Legislativo e Judiciário.

Assim, os interesses corporativos e familiares, de poucos, continuam privilegiados, em detrimento dos interesses públicos. E o Poder Judiciário, como, no mais, todos os outros, é, salvo erro de juízo, um poder público, ao menos na Constituição.

Inconstitucional é, como no caso do nepotismo, transformar o público em privado, qualquer que seja a instância democrática!

*Adilson Luiz Gonçalves é escritor, engenheiro, professor universitário e mestrando em Educação. Autor do livro: "Sobre Almas e Pilhas", Editora: Espaço do Autor.

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Dilema Tostines: o FSM veio à Venezuela, ou a Venezuela é que foi ao Fórum?

Por Gilberto Maringoni*, direto de Caracas – 25/01/06

O Fórum Social Mundial de 2006 começou em La Paz, Bolívia, no domingo, a alguns milhares de quilômetros da sede oficial, Caracas. A posse de Evo Morales, não apenas por ser realizada, coincidentemente, dois dias antes da marcha de abertura, mas pelo significado político, encarna à perfeição a idéia daqueles que vêem o Fórum como um processo político contínuo e não como um evento delimitado em poucos dias.

O afiado discurso inaugural, de uma hora e meia, do novo mandatário boliviano pontuou o variado ideário que impulsiona as gigantescas assembléias do movimento por outro mundo possível. Evo fez um rechaço às discriminações de qualquer ordem, denunciou a privatização de recursos naturais, a supremacia do capital financeiro e do imperialismo e clamou por uma nova ordem, mais justa, baseada em Estados democráticos.

Aliás, não apenas com Evo Morales, mas com a chamada onda esquerdista que varre a América Latina, as idéias centrais do Fórum saem do terreno das intenções e ganham materialidade. Há, em alguns países, um processo de "cotidianização" de pequenos e grandes desejos coletivos. Isso se dá não apenas pelas ações de alguns governos que enfrentam a ortodoxia ultraliberal, mas especialmente pelos povos a repudiar as políticas de ajustes regressivos levadas a cabo nas últimas duas décadas.

Ventos favoráveis
Possivelmente a América Latina não viva um período tão favorável aos movimentos populares desde a conjuntura aberta em 1952, com a revolução boliviana. Ela passou pela eleição do nacionalista Jacobo Árbenz, na Guatemala em 1953, pela derrubada do ditador Marcos Pérez Jiménez, na Venezuela em 1958, pelo avanço de mobilizações populares no Brasil e que teve seu ponto alto na revolução cubana, em 1959. Essa conjuntura se fecha com o início do ciclo de ditaduras militares, cujo marco definidor acontece no Brasil, em 1964. Desde então, nunca tantos povos se mobilizaram por uma mudança de rumos.

Embora auspiciosos, esses novos ventos têm uma fragilidade: ainda não conseguiram definir um programa alternativo. O governo Chávez, o mais avançado de todos, constrói seu projeto a quente, em numerosos enfrentamentos com a oligarquia e com a Casa Branca. Possivelmente o mesmo se dará com o governo Evo Morales. Como o Fórum Social, todos tateiam suas possibilidades em meio a uma conjuntura de imensa agressividade dos EUA. Mas contam a seu favor com o crescente sentimento antiimperial que contamina não apenas o FSM, mas crescentes contingentes populacionais ao sul do mundo.

A ponte que partiu
No caso venezuelano, as maiores ameaças à continuidade do processo não provêm agora de marchas ou boicotes oposicionistas. No domingo, esses setores promoveram uma passeata pelo centro da capital, com cerca de 30 mil participantes. Um número expressivo, mas nada comparável ao golpe de abril de 2002, ou ao locaute de dois meses ocorrido no final do mesmo ano. Com quatro canais de televisão e grande parte da mídia impressa na mão, além de dinheiro, muito dinheiro, e total liberdade de organização, a capacidade de mobilização oposicionista é bastante razoável.

O maior desafio do governo é representado pelo rompimento dos pilares de sustentação de um dos viadutos da via expressa de 40 quilômetros ligando o aeroporto internacional Simon Bolívar à capital. A região é pontuada por montanhas e vales e não existe rota alternativa em boas condições. O que há é uma velha estrada a serpentear a serra onde se localiza o bairro de Cátia, com curvas fechadas e passagens estreitas, que aumentaram a viagem dos usuais 30 minutos para um martírio que se estende para além de três horas.

O viaduto rompido condensa as tensões de um governo que venceu enfrentamentos políticos, erradicou o analfabetismo, colocou um médico em cada bairro, aumentou salários – o mínimo é de 180 dólares -, reduziu o desemprego e impulsiona o crescimento da economia para o recorde de 9,5% entre os emergentes, em 2005. Ao mesmo tempo, as administrações ligadas a Chávez mostram-se incompetentes para recolher regularmente o lixo das ruas, manter a iluminação pública funcionando a contento e cuidar de partes importantes da infra-estrutura de transportes. A situação é reconhecida por membros do governo. Tacitamente admitem que a chamada "revolução bolivariana" ainda não conseguiu democratizar e desobstruir importantes canais da gestão estatal responsáveis por áreas vitais.

Essas questões possivelmente terão influência nos debates deste Fórum. Não são apenas dezenas de milhares de ativistas que chegam a Caracas, mas é Caracas e a Venezuela que chegam ao Fórum, com seus avanços e impasses do dia a dia.

Estes movimentos contraditórios ainda não conformam "o extraordinário que se torna cotidiano", na feliz definição de revolução feita por Che Guevara. Mas certamente aumentarão a dose de realismo nas quase duas mil atividades que tomarão conta desta cidade caribenha até o próximo fim de semana, fazendo deste o mais político dos Fóruns..

* Gilberto Maringoni é jornalista, chargista e colaborador da Agência Carta Maior.

 

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Caracas: Um marco na história para a construção do socialismo

Por Francisvaldo Mendes* – 23/01/06

O Fórum Social Mundial em Caracas no ano de 2006 mostrará que uma nova perspectiva de luta se abre para o mundo e a construção de uma outra sociedade é possível, haja vista, a insatisfação que os povos têm demonstrado seja contra a invasão do Iraque pelos EUA ou elegendo líderes populares.

O projeto político neoliberal já deu mostras de esgotamento em todos os seus âmbitos. A recomendação do Banco Mundial por políticas compensatórias para amenizar as contradições sociais não tem sequer respondido às necessidades básicas da humanidade, pois o sistema capitalista, com a lógica de sugamento de pequenos capitalistas pelos grandes capitalistas - e conseqüentemente a exploração cada vez maior do povo - vem aumentando a exclusão social e as desagregações cada vez maiores dos trabalhadores e trabalhadoras.

A construção de alternativas socialistas e a perspectivas de luta dos trabalhadores e trabalhadoras se fortalece com as atitudes claras, objetivas e com vontade política de lideranças, organizações, governos e movimentos sociais que se colocam contra o projeto neoliberal, que seja anticapitalista e antiimperialista, enfrentando a cooptação ideológica que o projeto neoliberal causou nas mentes e corações de muitos militantes de esquerda.

O FSM de Caracas poderá aprofundar as experiências dos governos da América Latina e traçar uma contra-ofensiva, matando de vez o projeto neoliberal, seguindo a vontade dos povos de países como Cuba, Venezuela, Bolívia, Chile entre outros, onde a vontade política da população é contra a política imposta pelos EUA.

No dia 22 de janeiro de 2006, tomou posse na Bolívia um líder popular para a presidência, demonstrando que a eleição é um momento importante para questionarmos o projeto neoliberal, mas devemos ter claro que este instrumento é apenas uma bandeira das muitas que os movimentos sociais e os trabalhadores e trabalhadoras terão que levantar para derrubar o sistema capitalista.

A organização dos trabalhadores e trabalhadoras e sua constante mobilização são outro mecanismo de pressão para que representantes do povo não sejam cooptados dentro e fora das estruturas burguesas e o papel de dirigentes populares, sindicais e governos é a fomentação e agudização das contradições do sistema capitalista para que possamos mostrar ao povo que o esse modelo serve apenas aos capitalistas (Banqueiros, Agroindustriais, latifundiários, industriais etc.).

Portanto, o FSM de Caracas terá um papel fundamental diante da realidade que estamos vivendo em muitos países e dará a demonstração clara de quem realmente quer construir alternativas para a luta do povo, apresentando ao mundo a possibilidade de constituirmos sociedades livres e soberanas, enfrentando a política imperialista dos EUA e construindo a união dos trabalhadores e trabalhadoras na construção do socialismo.

* Francisvaldo Mendes é diretor executivo da CUT Nacional

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Razões da desigualdade no Brasil

Por Márcio Pochmann* - 03/10/05

Somente 5 mil clãs de famílias chegam a se apropriar de mais de 40% de toda a riqueza nacional, embora o país registre mais de 51 milhões de famílias. Como explicar tal situação que remonta à estabilidade secular no padrão excludente de repartição da renda e riqueza no Brasil?

A desigualdade na repartição da renda, riqueza e poder é uma marca inalienável do Brasil. De acordo com o "Atlas de exclusão social – Os ricos no Brasil" (Cortez, 2004), somente 5 mil clãs de famílias chegam a se apropriar de mais de 40% de toda a riqueza nacional, embora o país registre mais de 51 milhões de famílias. Se considerar somente a parcela da população que se concentra no décil mais rico, verifica-se que 75% de toda a riqueza contabilizada terminam sendo por ela absorvida. Em outras palavras, restam 25% da riqueza nacional a ser apropriada por 90% da população brasileira.

Concentração começa pelo poder

Esse descalabro em relação à concentração sem limites da riqueza no país não é algo recente. Pelo contrário, isso parece ser algo consolidado desde sempre no país, embora desde 1980, com o abandono do projeto de industrialização nacional, tem avançado no país o ciclo da financeirização da riqueza, com retorno ao modelo primário-exportador de matérias primas e produtos agropecuários. Da mesma forma que os ciclos econômicos anteriores, o padrão distributivo segue inalterado, a não ser pelo aprofundamento da desigualdade de renda e riqueza. Entre 1980 e 2000, por exemplo, quando o crescimento econômico foi pífio, praticamente dobrou em termos absolutos e relativos a quantidade de famílias ricas. Também se tornou geograficamente mais concentrada ainda a presença dos ricos no Brasil. Atualmente, somente quatro cidades respondem por quase oito a cada dez famílias ricas no Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte).

Como explicar tal situação que remonta à estabilidade secular no padrão excludente de repartição da renda e riqueza no Brasil? A resposta talvez deva ser encontrada na estabilidade do poder em mãos do conservadorismo das elites no país. Assim como a renda e a riqueza, o poder no Brasil encontra-se muito concentrado. Daí porque o país jamais ter vivido alguma experiência revolucionária. As insurreições existiram, mas foram, em geral, massacradas pelas forças do conservadorismo. Mesmo a revolução burguesa ocorreu desfigurada, sem que fosse inofensiva ao padrão excludente de repartição da riqueza e renda.

Ausência histórica de democracia

As reformas civilizatórias do capitalismo contemporâneo também deixaram de acontecer no Brasil. Assim, sem revoluções e sem reformas consideráveis, o padrão distributivo não seria modificado. A ausência de democracia consolidada parece ser a grande razão do conservadorismo e da concentração do poder. Dos mais de cinco séculos de existência, o Brasil não tem 50 anos de regime democrático.

É claro que não se pode chamar de democracia o que ocorria durante a fase imperial do século 19 e a República Velha (1889 a 1930). Tratava-se de um regime censitário, capaz de disponibilizar o voto tão somente para a população masculina que tinha posses e renda, compreendendo cerca de 5% da população. Deve ser lembrado ainda que as eleições não eram secretas.

Somente a partir da década de 1930 é que o Brasil avançou par consolidar o voto secreto e universal, mesmo que deixando de fora a população analfabeta. Mas a partir daí tiveram o Estado Novo (1937-45) e o regime militar (1964-85), justamente quando se definiu o novo pacto de poder favorável à industrialização (década de 1930) e quando o país registrou as maiores taxas de crescimento da renda (milagre econômico entre 1968 e 1973).

Quando o autoritarismo predominou, os ricos foram beneficiados, mantendo inalterado o padrão distributivo excludente no país. Os apelos populares e progressistas do povo em favor da melhor repartição dos frutos do crescimento econômico ficaram de fora do núcleo de poder. Durante os períodos democráticos, mantiveram-se altas as demandas reprimidas pelas fases autoritárias, especialmente num ambiente de enorme heterogeneidade social e geográfica. As convergências necessárias para o desenvolvimento de um projeto revolucionário ou mesmo de natureza reformista ficaram subsumidas na administração das emergências e no congraçamento de articulações políticas entre distintos extratos de classe sociais, muitas vezes necessárias à governabilidade.

Políticas públicas a meio caminho

Por conta disso, o encaminhamento das questões referentes à alteração do padrão distributivo ficou em segundo plano. Também o bloqueio que emerge na priorização das ações de governo a serem realizadas termina direcionando a tarefas de curto prazo, incapazes de alterar a estrutura de concentração dos agregados de renda e riqueza no país. Da mesma forma, a concentração do poder econômico e político impõe obstáculos profundos na gestão o país. O reacionarismo das elites que concentram o poder tem inviabilizado a concretização de reformas num ambiente democrático.

Na ausência de revolução e reformas, geralmente obstadas pelo conservadorismo, as políticas públicas ficaram pelo meio do caminho. Os gastos públicos nas áreas sociais já são significativos, ainda que não suficientes para repararem a herança do padrão excludente de repartição da renda nacional. Mas seus resultados demonstram a importância para evitar um maior aprofundamento da desigualdade de renda. No entanto, apresentam-se insuficientes até o momento para modificar a estrutura secular da má repartição da riqueza.

Assim, a composição fundiária segue muito concentrada. A estrutura tributária permanece regressiva, com a população pobre pagando mais impostos e os ricos quase que incólumes, enquanto a estrutura social se mantém distante das possibilidades governamentais de garantir a universalidade e qualidade necessária dos bens, serviços e equipamentos sociais básicos para toda a população.

O que o Banco Mundial não vê

Como se pode observar, há razões de ordem estruturais para obstaculizar a alteração considerável da distribuição da renda e riqueza no Brasil. Mesmo assim, o Banco Mundial parece desconhecê-las, ou mesmo desprezá-las quando se propôs, recentemente, a analisar as causas da desigualdade nacional, tendo identificado o déficit educacional como medida a ser enfrentada fundamentalmente. Ora, a educação é apenas parte de um processo muito mais amplo, sendo necessária ampliação dos investimentos, porém não suficiente para modificar a desigualdade de renda e riqueza.

Para aqueles que acreditam nas hipóteses da teoria do capital humano bastaria apenas e tão somente analisar a situação do desemprego entre os brasileiros ricos e pobres, para saber que nas condições atuais da economia nacional, quanto mais os pobres estudam maior tem sido a possibilidade do desemprego, uma vez que crescem as colocações de mão-de-obra por meio das relações sociais e pessoais num país de enorme excedente de força de trabalho.

A universalização da educação, em todos os níveis no Brasil, deve ser uma meta a ser alcançada mais rápida possível, sem que isso represente uma panacéia em termos de combate à desigualdade social. Suas causas são mais profundas e requerem mudanças estruturais, que somente a organização popular poderá levar a sua realização.

* Márcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.

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O estrago que a índia da Rede Globo faz

Por Florêncio Vaz* – 23/08/05

Justo nesse novo momento para os povos indígenas na América Latina - que já nos trouxe Rigoberta Menchu como Prêmio Nobel e que pode levar ainda Evo Morales à presidência da República na Bolívia - ela apareceu para estragar a festa. No Brasil, quando as organizações indígenas dos vários povos se mobilizam para reconquistar as terras perdidas e exigir direitos constitucionais, quando a imagem negativa dos índios como "selvagens" começa a se dissipar e muitas pessoas perdem a vergonha de se assumir abertamente como indígenas, a "Índia" da novela da Globo vem mostrar que ainda não estamos no século XXI. Por mais que a caricatura apresentada na novela "A Lua me disse" nada tenha a ver com a realidade atual de uma mulher índia, ela diz muito do que alguns setores da sociedade brasileira pensam sobre os povos indígenas, e joga na lama todo um trabalho de quem quer construir um Brasil plural, onde diferenças raciais e étnicas não sejam empecilho para uma convivência respeitosa e igualitária.

Desde que entrou no ar, a novela de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa vem causando risadas e protestos devido à forma como a personagem "Índia" é apresentada na trama. Divertida e risível, ela também é sempre humilhada, chamada de "preguiçosa" e ridicularizada na casa da família onde trabalha. Fala o português gramaticalmente errado, com o verbo na terceira pessoa, como nos filmes de westerns de Hollywood: "índia quer, índia gostar...", além de falar uma língua que ninguém entende. E mais, ela se mostra uma índia "tarada" correndo atrás dos homens pela casa, gritando: "índia quando quer homem fica nua na taba, índia gosta de ver homem nu, índia quer". Risada geral.

Palmas para o trabalho da atriz paraense Bumba, de Belém do Pará, que se diz filha de índios e que traz no semblante os traços marcantes dos seus ancestrais. Esta respeitável e alegre senhora de 7 filhos e 27 netos é uma artista consagrada. Estreando em novelas na Globo, ela já trabalhou na mini-série "A Muralha" e nos longa metragens "Brincando nos Campos do Senhor" de Hector Babenco e "O Curandeiro da Selva", gravado no México, com o galã Sean Connery. Foi em uma entrevista no Jô Soares que Miguel Falabella a descobriu e decidiu levá-la para o tal papel. O problema não é com Bumba e nem com seu reconhecido talento, mas sim com a personagem que ela encarna.

No começo de maio foi amplamente divulgada uma carta de repúdio de entidades do Mato Grosso protestando contra o modo como a "índia" era tratada na novela, que significava um desrespeito com os povos indígenas e reativava uma visão pejorativa que eles lutam para superar. Enquanto a carta, que teria sido entregue no Congresso Nacional e mandada para a TV Globo, circulava em jornais impressos e na internet, por todo o país aumentava o descontentamento de índios e não-índios.

Outras manifestações se seguiram, como um documento escrito pelo casal de vereadores Panderewup Zoró e Lígia Neiva, representantes dos indígenas em Rondolândia (MT), durante um curso de magistério para professores indígenas. O município é região de tensos confrontos com os "brancos", devido à luta pela terra. Os Nambiquara ali presentes solicitaram informações a respeito do uso indevido e preconceituoso da imagem do seu povo na TV. Após as explicações e discussões, ficaram revoltados e indignados. Os índios prometeram fazer as suas reivindicações por meio da Associação Indígena. Os vereadores, junto com os assessores, elaboraram a sua carta na mesma hora.

No documento eles falam da surpresa em saber que no portal da FUNAI "não vimos nenhuma manifestação deste órgão de proteção e defesa do direito do povos indígenas, quanto ao desrespeito, preconceito e uso indevido da "imagem" dos índios, demonstrados claramente na novela de Miguel Falabela, "A Lua Me Disse", quando uma indígena atriz do Pará que não é da etnia Nambiquara é chamada de "Nambiquara", colocando para todo Brasil uma distorção da imagem da mulher indígena". Eles pedem uma resposta do órgão indigenista, sobre que medidas estariam sendo tomadas, para saber "se esta novela vai continuar assim" e "se a Globo vai se retratar em público sobre o malefício que trouxe aos Nambiquara e às demais mulheres indígenas".

Depois de discordar da imagem de submissão da mulher indígena mostrada na novela, eles perguntam: "Será que o que a Globo vem mostrando servirá de incentivo para as mulheres indígenas continuarem suas lutas? Ou, será que elas se sentirão as selvagens, preguiçosas, taradas etc., ao andarem pelas ruas e serem vistas desta forma? Quem responderá pela discriminação racial, constrangimento, preconceito ocasionado pela repercussão e imagem da mulher indígena que ficará na cabeça dos brasileiros, que toda vez que virem uma índia na rua vão ligar a sua imagem com a índia Nambiquara da novela? Quem indenizará as mulheres e a etnia Nambiquara pelos danos morais que estão sofrendo?" É um profunda análise, envolvendo elementos de ordem ética, psicológica e jurídica, e uma séria cobrança aos responsáveis pela veiculação da novela e ao inoperante órgão indigenista oficial que, aliás, nem respondeu aos autores.

A direção da TV Globo já recebeu recomendação do Ministério Público Federal (MPF) para que mudasse a imagem da personagem ao longo da novela, de forma que a "índia" não aparecesse mais em situações humilhantes, como as que provocaram as reações de revolta das entidades. O MPF está aguardando resposta do departamento jurídico da emissora, que não quis se manifestar oficialmente quando da divulgação dos protestos. Mas talvez os resultados da pressão já estejam aparecendo bem lentamente. Nos últimos capítulos da novela, "Índia" tem se vingado das madames que mais a humilhavam, sem deixar de ser engraçada, como quando serviu pimenta malagueta na sopa e se divertiu enquanto as patroas corriam para beber água. Mas isso não corrige um problema maior. Além do mais, o estrago já está feito.

Para quem vê a polêmica distante do ponto de vista dos indígenas, pode parecer mais um caso da moda do politicamente correto. A própria Bumba, revoltada com as manifestações contrárias à sua personagem, teria desabafado: "Tem tanto índio morrendo de fome e eles se preocupando comigo que estou trabalhando. Queria que existissem milhões de Falabellas para dar emprego aos índios". A preocupação pró-indígenas procede e muito. Para o advogado e indigenista Carlos Eduardo Chaves, "este tipo de novela da Globo é um dos maiores desserviços prestados pela televisão ao povo brasileiro, moldando padrões éticos e estéticos deturpados. É uma influência verdadeiramente nefasta na cabeça de um povo tão carente de cultura e educação". Quanto aos empregos para índios nas novelas, a revolta é exatamente contra este tipo de "papel" que o autor oferece aos índios e que eles demonstram recusar.

É bom lembrar que a emissora é reincidente nesse tipo de tratamento à imagem dos indígenas. Em 2000, a novela "Uga Uga", de Carlos Lombardi, mostrava uma aldeia que era visitada freqüentemente pelos homens "brancos", por quem as mulheres "índias" estavam sempre esperando semi-nuas para se entregarem aos prazeres selvagens da carne. Eram as antepassadas taradas da personagem de Bumba. Na época, os índios ficaram muito incomodados e a Comissão Pós-Conferência Indígena, criada depois da Marcha e Conferência Indígena de Coroa Vermelha (BA), enviou uma carta de protesto à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, repudiando as cenas que deturpavam e estereotipavam as culturas indígenas. Conforme o documento, os indígenas são apresentados como povos "sem capacidade, animais de atração de um circo usados para chamar a atenção dos telespectadores daquela emissora". Afirmavam ainda que "a novela abre caminho para os não-índios se relacionarem de forma preconceituosa com os povos indígenas". Isso em 2000. E nem falamos dos "índios" caricatos dos programas cômicos.

Para as famílias mais pobres, com pouco acesso à leitura de jornais e revistas, a televisão e as novelas em particular são as principais fontes de "informação" e as maiores formadoras de opinião. Então, não é exagero dizer que essas pessoas estão sendo levadas a reforçar ou a desenvolver uma deturpada idéia sobre os indígenas, ligada a atraso, ridículo, preguiçoso, erótico-exótico etc. "Uga Uga" foi vendida aos Estados Unidos e muitos outros países, onde também fez bastante sucesso. "A Lua me disse" já estaria sendo exibida em Portugal e logo deverá ganhar o mundo. Sabemos que parte das idéias que as pessoas fora do Brasil fazem da nossa gente e nossa cultura é moldada nessas novelas. Qual será a imagem que terão sobre os índios no Brasil? E não vale dizer que é só uma paródia, e que as pessoas sabem que é brincadeira.

O perigo é que através de estórias engraçadas e do humor aparentemente inofensivo são passados estereótipos depreciativos e altamente racistas. As piadas sobre "pretos" são um exemplo claro disso. As piadas não são apenas piadas. No caso que estamos discutindo, podemos apontar e denunciar alguns dos estereótipos mais nocivos à imagem dos indígenas.

De início, a personagem de Bumba é desprovida de nome próprio, ela é apenas "Índia" genérica, sem história própria e sem ligação com o seu povo. É como se ela não precisasse dessas referências. Quando citam o seu povo, é de forma ofensiva: "sua Nambiquara!" Como se ter uma identidade étnica específica fosse vergonhoso. Sinal dessa lacuna identitária é o fato de ela dizer que mora numa "taba", palavra que não é usada por nenhum povo atualmente. Só falta dizer que adora o sol e a lua, e é avó de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Ou seja, é uma índia que não existe no tempo presente, só em um fantasioso passado mítico nacional. Muito mais provável historicamente, por exemplo, seria admitir que ela sobreviveu quando seu povo foi massacrado na construção da Transamazônica nos anos 70 ou que ela foi obrigada a abandonar sua família Guarani-Kaiowa no MS, e procurar emprego na cidade, devido à miséria e a falta de terra. Mas isso já seria realista demais.

"Índia" tem uma língua ininteligível que os "civilizados" da cidade não compreendem. A sua "língua indígena" só serve para fazer rir, por ser exótica e remeter mais ainda ao papel de "selvagem", bem próximo dos animais, cujos grunhidos e latidos os humanos não entendem. Os brancos não precisam se preocupar em aprender a língua indígena, pois é a índia que tem que falar a língua da metrópole, ela é que precisa se civilizar. Mas na escala evolutiva, ela parece estar longe disso. Fala português errado e em frases curtas e grosseiras, como se fosse incapaz de exprimir um raciocínio mais elaborado e reflexivo.

Não sendo uma "civilizada", uma pessoa como as outras, "Índia" não tem uma vida afetiva normal. Ela não tem sentimentos, tem apenas instintos, e o desejo irrefreável de sexo. É uma tarada, desequilibrada. Novamente jogada para junto dos animais. Por isso não tem e nem pode ter um namorado, "índia quer homem nu" apenas. Joel Zito Araújo, no livro "A Negação do Brasil: o Negro na Telenovela Brasileira", mostra como os personagens negros na TV dos anos 60 e 70 também não tinham uma vida amorosa normal, além de serem geralmente subalternos, malandros ou empregadas domésticas. As mulheres eram sempre as mulatas sedutoras. Zezé Mota, por exemplo, estreou como doméstica em "Beto Rockfeller". Sobre os homens, veja só: Pelé, na novela "Os Estranhos", quase na falava e não se apaixonou por ninguém. Muito estranho mesmo, mas compreensível.

Como os personagens negros de novela agora compõem famílias de classe média, namoram normalmente e até estão entre os papéis principais, será uma tendência que as "índias" passem a ser as domésticas da estória? Existem índias advogadas, professoras, enfermeiras, escritoras e domésticas, entre outras. Por que escolher para retratar justo a doméstica? Porque isso está em sintonia com o estereótipo de que o índio ocupa na sociedade brasileira o degrau mais baixo. Exemplo eloqüente: no portal da Rede Globo (acesso em 19/08/2005), sobre a novela, na lista dos personagens por ordem alfabética, vai-se de Adail a Zé Bisonho, depois do qual vem, em último lugar, a nossa "Índia". Subverte-se o alfabeto, mas não a "estrutura" da sociedade.

E hoje, com a radicalização das reivindicações indígenas, com índios entrando nas universidades através das cotas e querendo participar mais na sociedade brasileira, seria a hora de mostrar a eles o seu lugar na hierarquia social. Cabem a eles, portanto, os trabalhos que os "brancos" não querem fazer. Então, é preciso tirar a humanidade e a dignidade da "Índia" para melhor dominar e excluir os índios. Não estamos discriminando as domésticas como categoria profissional, mas não concordamos que esta ocupação seja colocada como "o" lugar de índios ou negros.

Com essa visão de índio mostrada de forma estereotipada e racista na TV, os mais atingidos negativamente são as crianças e os jovens indígenas que ainda não tem firme a auto-estima da sua identidade étnica. Pesquisas mostram que uma consciência étnica ou racial começa a surgir desde a infância. Se as crianças são expostas a situações em que sua raça e seus costumes são mostrados de forma negativa, elas também tenderão a desenvolver uma "identidade negativa" de si e do seu grupo, que se prolongará na juventude e, se continuar sendo alimentada, por toda a vida. Por isso os índios perguntaram: como nossas mulheres vão se sentir orgulhosas da sua indianidade quando escutam piadas comparando-as com a "índia" tarada da televisão? É claro que a imagem de índio que a novela divulga tem conseqüências altamente desestruturadoras na mente da população indígena. E milhares de índios que vivem anônimos nas áreas urbanas podem continuar escondendo sua identidade étnica para escapar de mais discriminação.

As reações dos próprios índios e de outros setores da sociedade brasileira mostraram firmeza em repudiar este tipo de abuso. Mas de concreto o que está sendo feito? Primeiro, tornar a indignação pública já é algo concreto, é um gesto político. O silêncio chega a ser conivência. E como as entidades também encaminharam seus protestos aos órgãos competentes, temos a impressão que desta vez a TV Globo vai levar mais a sério a opinião da sociedade e a força da Lei, admitindo que não pode ridicularizar ou humilhar sempre toda um povo impunemente, como se ela fosse o próprio Direito.

O Ministério Público Federal já está trabalhando nesta matéria a partir da representação dos indígenas e das outras entidades. Na Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro, tramita um Procedimento Administrativo sobre a questão, que será um dos pontos de pauta da Audiência Pública que vai discutir "Programação de TV e Cidadania", no dia 24 de agosto próximo naquela capital. Será um espaço privilegiado para os cidadãos índios e não-índios, entidades e os Procuradores afirmarem diante das emissoras de TV que o direito e a dignidade da pessoa humana estão acima do preconceito e do lucro fácil. E que essas emissoras têm um papel importantíssimo na verdadeira educação dos brasileiros, uma educação para a tolerância e o respeito diante do "outro".

* Florêncio Vaz, do povo indígena Maytapu/PA, é frade e ativista do movimento indígena da Amazônia. É formado em Ciências Sociais, mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ, professor de Sociologia na UFPA e doutorando em Ciências Sociais/Antropologia na UFBA (e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.).

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Médicos para o povo

 

Por Emir Sader* – 23/08/05

Em cerimônia – não noticiada pela imprensa brasileira – formou-se a primeira geração de médicos da Escola Latino-americana de Medicina (ELAM), no Teatro Karl Marx, em Havana, na presença dos presidentes de Cuba, da Venezuela e do Panamá.

São 1.600 médicos, de 28 países, formados no país que tem a melhor medicina pública do mundo, atestada pelos extraordinários índices de saúde do povo cubano. Foram formados de forma totalmente gratuita, em um curso de 6 anos, que incluiu a prática de medicina nas regiões pobres dos seus paises de origem. A idade média dos formados é 26 anos.

70% desses médicos são diretamente originários de famílias pobres, 46% são mulheres, vários deles são filhos ou netos de desaparecidos políticos de países como o Chile, a Argentina e o Uruguai.

Seguem estudando na Escola Latino-americana de Medicina 12.000 alunos, dos quais 5.500 são da América do Sul, 3.244 da América Central, 1.039 do Caribe, 489 do México e dos Estados Unidos, 42 da África e do Oriente Médio, 61 da Ásia, 2 da Europa. 64 são de povos indígenas da América Latina.

Esse exemplo extraordinário de solidariedade permite que se forme a primeira geração de médicos pobres, que trabalharão na saúde pública dos seus países, não buscarão lucros abrindo consultórios para tender a clientela rica – que já dispõe de suficientes médicos particulares e convênios particulares de saúde à sua disposição. O projeto passou a fazer parte da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), um projeto de integração baseado na solidariedade e na generosidade, como um exemplo vivo do humanismo contemporâneo.

O Brasil se beneficia desse projeto e os médicos formados na Escola Latino-americana de Medicina tem que ser recebidos e inseridos na nossa sociedade – tão carente de melhoria do atendimento de saúde da grande maioria -, para estar minimamente à altura dos gestos generosos que nos propiciam ter essa primeira geração brasileira de médicos pobres, voltados para a atenção aos pobres.

* Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de "A vingança da História".

 

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Previdência e inclusão social

Por Vilson Romero* - 09/08/05

A expressão "trabalho informal" consolida-se no início da década de 70, a partir de estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre as condições de trabalho em países africanos, onde grande contingente de trabalhadores vivia e agia à margem da lei sem quaisquer formas de proteção social ou regulação do Estado.

A formalização das relações de trabalho com definição de tarefas e de contraprestação salarial surgiu a partir do século XVIII, com o incremento do processo industrial, até chegarmos ao início do século XX, quando foi instituído o contrato de trabalho, inserindo expressamente direitos e deveres na relação patrão-empregado. As mudanças impulsionadas pela tecnologia e oneração excessiva da mão-de-obra colaboraram para que, no início deste século XXI, uma parcela expressiva da população mundial estivesse à sombra da inclusão social, na chamada economia marginal ou subterrânea.

No Brasil, o Banco Mundial revela que 39,8% do Produto Interno Bruto (PIB) é informal. Mas os números e comparações não param aí. Em recente pesquisa sobre economia informal urbana, o IBGE conclui que um quarto dos brasileiros ocupados em atividades não-agrícolas está envolvido com negócios informais, resultando em mais de 13 milhões de brasileiros no chamado "Brasil subterrâneo", população que supera em 30% o total de habitantes, por exemplo, de Portugal (10,56 milhões).

Um outro número resultante da Pesquisa de Mercado e Emprego do Ministério do Trabalho põe mais lenha na conta da economia excluída: há 43,03 milhões de brasileiros, ou seja, 55% da população ocupada, à margem da chamada "proteção" previdenciária. Destes, 16 milhões possuem renda maior do que um salário mínimo.

Inúmeros fatores podem ser citados como responsáveis por este quadro de exclusão social. O custo da formalização do emprego, que envolve obrigações sociais (INSS, FGTS, RAT, etc...) num montante superior a 35% do salário nominal, acrescido dos direitos trabalhistas (férias, repouso remunerado, 13º salário, etc...) responsáveis por mais 40%, assustam o empresário que pretende "assinar" a carteira de trabalho.

Além disto, há um universo de mais de 900 mil cidadãos que trabalham na via pública, como camelôs, vendedores de lanches, de fichas de transporte coletivo, de balas e frutas, entre outros. Acresçam-se os 3,8 milhões de empregados domésticos sem proteção social, por falta de formalização ou de condições para arcar com contribuições que levam 1/5 do seu salário e teremos aos poucos um retrato dramático das condições de trabalho do brasileiro.

Minimizando este retrato preocupante e colaborando, em parte, para aumentar os indicadores de inclusão social, duas recentes providências legislativas devem ser contabilizadas.

Na votação da Medida Provisória 242, recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados e agora em tramitação no Senado Federal, foi inserido artigo criando o sistema especial de inclusão previdenciária, já determinado na Emenda Constitucional nº. 40. Pelo dispositivo, que ainda deve ser aprovado em nova votação, abre-se a possibilidade de o trabalhador autônomo ingressar na previdência social pública pagando contribuição de 11% sobre o salário mínimo, ao invés dos 20% pagos hoje em dia. Em síntese, permite reduzir o desembolso mensal de R$ 60,00 para R$ 33,00, o que, para quem ganha salário mínimo, é muito...

O legislador, nesta MP, acrescenta o § 2º ao artigo 21 da Lei 8.212, passando a determinar que "é de onze por cento sobre o valor correspondente ao limite mínimo mensal do salário-de-contribuição a alíquota de contribuição do segurado contribuinte individual, que trabalhe por conta própria, sem relação de trabalho com empresa ou equiparado, e do segurado facultativo que optarem pela exclusão do direito ao benefício de aposentadoria por tempo de contribuição".

A outra novidade resulta da possibilidade surgida na Emenda Constitucional nº 47, chamada PEC paralela, que foi promulgada em 5 de julho e publicada no Diário Oficial em 6 de julho deste ano. No artigo 201 da Constituição Federal, o parágrafo 12 passou a ter a seguinte redação: "Lei disporá sobre sistema especial de inclusão previdenciária para atender a trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda que se dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencentes a famílias de baixa renda, garantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a um salário-mínimo". Adiante, o parágrafo 13 do mesmo artigo realça que o tal sistema de inclusão "terá alíquota e carências inferiores às vigentes para os demais segurados do regime geral de previdência social".

Por mais que sejam providências que, na prática, não tenham sustentação atuarial, já que a primeira prevê contribuição de 11% e a outra permita aposentadoria a quem, nos termos da lei, com certeza, pouco contribuirá, são medidas que aproximam os trabalhadores do sistema oficial de previdência.

Tomara não sejam medidas que daqui a uma década ou uma década e meia revelem-se como fulcrais para a definitiva falência do regime público de previdência, cujo desequilíbrio, em 2005, já supera os R$ 30 bilhões, deixando em alerta administradores e governo.

* Vilson Romero é jornalista, administrador público, conselheiro e coordenador do Departamento de Direitos Sociais e Imprensa Livre da Associação Riograndense de Imprensa e consultor da Fundação Anfip de Seguridade Social – e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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Projeto 1+2: Uma Terra e Duas Águas

Por Roberto Malvezzi, Gogó * - 18/07/05

O semi-árido brasileiro possui uma população rural estimada em aproximadamente 2,2 milhões de famílias, aproximadamente 9 milhões de pessoas. Agora, com a inclusão oficial de municípios do norte de Minas, o número cresceu muito mais. É a região brasileira mais rural.

Essa população está espalhada por uma área de aproximadamente 850 mil quilômetros quadrados, que agora passa também para aproximadamente 960 mil quilômetros quadrados com a inclusão do norte de Minas. É a população brasileira mais excluída de saneamento ambiental (abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, contenção de vetores, etc). É também a que apresenta os menores índices de desenvolvimento humano do país (IDH).  É a população retirante retratada nas músicas de Luís Gonzaga, nas pinturas de Portinari, nos romances de Graciliano Ramos e na poesia de João Cabral de Mello Neto. Sem infra-estrutura para enfrentar o clima do semi-árido é a que mais sofre com os efeitos do clima, a que mais migra, a que mais morre.

Para essa população a ASA (Articulação do Semi-Árido) está propondo o projeto "Uma Terra e Duas Águas (1+2). O projeto tem inspiração no projeto aplicado na região semi-árida da China, o chinês "1-2-1". Ele visa proporcionar a cada família do semi-árido uma área de terra suficiente para viver com dignidade; uma água para abastecimento humano (cisterna caseira) e uma segunda água para produção agropecuária, conforme a vocação de cada micro região dentro do semi-árido. Assim como na China, o projeto pressupõe a reforma agrária e a construção de uma malha de pequenas obras hídricas para captação de água de chuva. Assim a China já resolveu o problema básico de 2 milhões de famílias de seu semi-árido - dando a cada família 0,6 hectares de terra, uma água no pé da casa e outra na roça, além de uma área de captação na roça - e já irriga com água de chuva aproximadamente 200 mil hectares. Claro, há aí a decisão de um governo central forte e uma cultura chinesa do "cuidado" milenar. Cada roça nas mãos de um chinês é um jardim.

O semi-árido brasileiro é menor que o da China - 1.800 mil Km² lá -, tem uma população relativamente menor (20 milhões aqui e 90 milhões lá) e uma pluviosidade média maior aqui que na China (750 mm/ano aqui e 500 mm/ano em média lá). Portanto, é perfeitamente possível construir essa malha hídrica, multiplicando aos milhões essas pequenas obras e assim beneficiar a família onde ela mora. No conjunto é uma obra gigantesca, mas desconcentrada. O projeto é sustentável econômica, ambiental e socialmente. Ele empodera exatamente a população mais sujeita aos caprichos da elite política nordestina. A captação de água de chuva no pé da casa e na roça já é também sua distribuição. Portanto, o projeto dispensa obras hídricas gigantescas, de alcance espacial e social extremamente limitado, além de concentradoras da terra e da água. Com 1/3 da água de chuva que cai sobre o semi-árido todos os anos (750 bilhões de m³), Aldo Rebouças estima que poderiam ser irrigados 2 milhões de hectares de terras.

A concepção do 1+2 é antagônica à da Transposição do São Francisco. O 1+2 segue uma concepção de harmonia com a natureza, leva a sério a "crise planetária da água", enquanto a transposição segue uma concepção de mais de um século anterior à crise da água contemporânea. O 1+2 desconcentra terra e água, enquanto a transposição concentra. Aumenta oferta hídrica captando mais água de chuva e evitando a evaporação, enquanto a transposição apenas transfere água de uma bacia para outra. Atinge a população difusa, a que mais passa sede hoje, enquanto a transposição leva água para os grandes açudes do Nordeste setentrional já abastecidos com muita água. Não impacta o ambiente e coopera com a natureza, enquanto a transposição agride o São Francisco e suscita enormes dúvidas quanto à salinização de solos e o aumento no desperdício de água. Enfim, o 1+2 é o símbolo do princípio do cuidado com a natureza, do respeito e da cooperação com o ambiente. A Transposição representa o atraso, o consumo de água em expansão, a incompreensão dos limites da natureza, o desperdício, o hidronegócio mesclado com a indústria da seca.

Para oferecer essa segurança alimentar e hídrica mínima à população do semi-árido é preciso, além da reforma agrária, uma malha hídrica de aproximadamente 6,6 milhões de pequenas obras: duas cisternas no pé da casa para consumo humano, sendo uma usual e outra de segurança (4,4 milhões ao todo); mais 2,2 milhões de obras (cisternas, barragens subterrâneas, caxios, etc) para reter água para uso agropecuário. O custo desse projeto hoje, sem levar em consideração o custo da reforma agrária, seria de aproximadamente R$ 8 bilhões. Hoje a ASA trabalha com apenas uma cisterna no pé da casa visando atingir apenas 1 milhão de famílias. É um número forte, simbólico, mas não expressa toda a demanda real.

Essas obras têm que ser inteligentes e impedir o fator mais drástico para retenção de água no semi-árido, isto é, a evaporação. Portanto, à semelhança das cisternas para consumo humano, também é necessário evitar a evaporação da água nas obras para uso agropecuário, exigindo que elas sejam vedadas. Experimentalmente várias tecnologias já foram testadas e aprovadas em diversos pontos do semi-árido.

Esse projeto será uma revolução no semi-árido. Oferecerá segurança alimentar e hídrica a todas às famílias que hoje vivem espalhadas pela caatinga. Além do mais, oferecerá cidadania e liberdade política.

Esse é um desafio histórico. Não há mágica, depende da luta social e da capacidade de dar um passo a cada dia. É um desafio para todo o povo brasileiro, principalmente para a ASA que o propõe, para os próximos vinte anos.

* Roberto Malvezzi, Gogó é Coordenador Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

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Déficit nominal zero: o que significa isso?

Por Antônio Augusto de Queiroz* – 15/07/05

O déficit nominal zero, que o deputado Delfim Netto (PP/SP) propõe como meta, a equipe econômica já adota como objetivo. Ou seja, ambos defendem a mesma coisa, só que com táticas diferentes. Para Palocci e sua equipe, o superávit primário é a meta e o déficit zero o objetivo, mediante seu aumento gradual. Já Delfim quer queimar etapa e radicalizar no corte de gastos. Se antes o superávit era alcançado pelo aumento da receita, a tática do Governo agora é reduzir o gasto público, com corte de direitos e "choque de gestão".

A diferencia conceitual entre o superávit primário e o déficit nominal zero é sutil. O primeiro representa a diferença positiva (saldo) entre receita e despesa, menos gastos com juros das dívidas interna e externa. Ou seja, o dinheiro que sobra vai para pagamento de juros das dívidas, mas não é suficiente para pagar tudo, sendo a diferença transferida para o principal das dívidas. O segundo pressupõe economizar o suficiente para pagar todas as despesas do Governo, inclusive com juros.

O ministro Palocci é contra o déficit nominal zero, mas é ardoroso defensor do aumento do superávit primário, a partir da redução da despesa, dentro do plano de "choque de gestão". O ministro, nesse particular, tem razão. Segundo especialistas, o déficit nominal zero exigiria uma economia, depois de pagas todas as despesas do Governo, de algo como 10% do PIB, que seria o valor suficiente para pagar os juros das dívidas interna e externa.

Para alcançar o déficit nominal zero, o Governo teria que tomar uma série de medidas, politicamente inviáveis, como: i) desvincular benefícios previdenciários do salário mínimo; ii) aumentar a contribuição previdenciária, inclusive dos inativos; iii) elevar o limite de idade para efeito de aposentadoria, tanto no INSS como nos regimes próprios, inclusive com eliminação de diferença de idade entre homens e mulheres e entre trabalhadores urbanos e rurais; iv) fazer nova reforma administrativa, com corte de direitos, de cargos, congelamento salarial e redução de vantagens; v) aumento da DRU –Desvinculação de Receitas da União, de 20% para algo como 40% , entre outras medidas de arrocho.

O fato de o ministro Palocci ser contra o déficit nominal zero de imediato não é nenhum alento, exatamente porque ele quer o aumento do superávit primário, de 4,25% para algo como 5% do PIB, o que permitiria chegar ao déficit nominal zero em quatro anos. E, muito provavelmente, fará isso. Depois da saída dos ministros José Dirceu, Ricardo Berzoini e Tarso Genro, que defendiam redução das taxas de juros e ampliação dos investimentos, inclusive na área social, a equipe econômica passou a reinar absoluta no Governo.

As duas idéias em debate – aumento do superávit ou adoção do déficit nominal zero – servem apenas para aprofundar o ajuste fiscal. A atual política econômica trava o desenvolvimento, do ponto de vista econômico, e é excludente, do ponto de vista social. A prova é que o crescimento econômico no Brasil está abaixo da média mundial Lamentavelmente, essa política suicida poderá ser radicalizada com o eventual aumento da crise política, fato que demonstra que o Governo, em grande medida, é refém do mercado. Que a sociedade organizada reaja a essa insanidade.

*Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e Diretor de Documentação do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) e atual assessor parlamentar da Fenajufe.

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Educar para além do capital

Por Ivana Jinkings – 14/07/05

O ensaio que dá título a este volume foi escrito por István Mészáros para a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, no dia 28 de julho de 2004. Nesse texto, o professor emérito da Universidade de Sussex afirma que a educação não é um negócio, é criação. Que educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida. Na sessão inaugural no ginásio Gigantinho, enfatizou o sentido mais enraizado da frase "a educação não é uma mercadoria".

Em "A educação para além do capital", Mészáros ensina que pensar a sociedade tendo como parâmetro o ser humano exige a superação da lógica desumanizadora do capital, que tem no individualismo, no lucro e na competição seus fundamentos. Que educar é – citando Gramsci – colocar fim à separação entre Homo faber e Homo sapiens; é resgatar o sentido estruturante da educação e de sua relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatórias. E recorda que transformar essas idéias e princípios em práticas concretas é uma tarefa a exigir ações que vão muito além dos espaços das salas de aula, dos gabinetes e dos fóruns acadêmicos. Que a educação não pode ser encerrada no terreno estrito da pedagogia, mas tem de sair às ruas, para os espaços públicos, e se abrir para o mundo.

Pensando na construção da ruptura com a lógica do capital, Mészáros reflete nas páginas deste livro sobre algumas questões de primeira ordem, tais como: Qual o papel da educação na construção de um outro mundo possível? Como construir uma educação cuja principal referência seja o ser humano? Como se constitui uma educação que realize as transformações políticas, econômicas, culturais e sociais necessárias?

István Mészáros nasceu em 1930, em Budapeste, onde completou os estudos fundamentais na escola pública. Proveniente de uma família modesta, foi criado pela mãe, operária, e por força da necessidade tornou-se ele também – mal entrava na adolescência – trabalhador numa indústria de aviões de carga. Com apenas doze anos, o jovem István aumentou a idade no seu registro de nascimento para alcançar a idade mínima de dezesseis anos e ser aceito na fábrica. Passava, assim – como homem "adulto" –, a receber maior remuneração que a de sua mãe, operária qualificada da Standard Radio Company (uma corporação transnacional americana). A diferença considerável entre suas remunerações semanais foi a primeira experiência marcante e a mais tangível em seu aprendizado sobre a natureza das empresas transnacionais e da exploração particularmente severa das mulheres trabalhadoras pelo capital.

Somente após o final da Segunda Guerra, em 1945, pôde se dedicar melhor aos estudos. Começou a trabalhar como assistente de Georg Lukács no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste em 1951 e defendeu sua tese de doutorado em 1954. Mészáros seria o sucessor de Lukács na Universidade, porém, após o levante húngaro de outubro de 1956, com a entrada das tropas soviéticas no país, exilou-se na Itália – onde lecionou na Universidade de Turim –, indo posteriormente trabalhar nas universidades de St. Andrews (Escócia), York (Canadá), e finalmente em Sussex (Inglaterra), onde em 1991 recebeu o título de Professor Emérito.

Autor de obra vasta e significativa, ganhador de prêmios como o Attila József, em 1951, e o Isaac Deutscher Memorial, em 1970, Mészáros é considerado um dos mais importantes pensadores da atualidade. Sua experiência como operário que teve acesso ao estudo na Hungria "socialista", em meio às grandes tragédias do século XX, foi possivelmente determinante para a compreensão da educação como forma de superar os obstáculos da realidade: István – assim como Donatella, sua companheira desde 1955 e também professora na rede pública de ensino – sempre militou em defesa da escola da maioria, das periferias, aquela que oferece possibilidades concretas de libertação para todos.

Ele alerta, porém, que o simples acesso à escola é condição necessária, mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos. E que o deslocamento do processo de exclusão educacional não se dá mais principalmente na questão do acesso à escola, mas sim dentro dela, por meio das instituições da educação formal. O que está em jogo não é apenas a modificação política dos processos educacionais – que praticam e agravam o apartheid social –, mas a reprodução da estrutura de valores que contribui para perpetuar uma concepção de mundo baseada na sociedade mercantil.

Mészáros sustenta que a educação deve ser sempre continuada, permanente, ou não é educação. Defende a existência de práticas educacionais que permitam aos educadores e alunos trabalharem as mudanças necessárias para a construção de uma sociedade na qual o capital não explore mais o tempo de lazer, pois as classes dominantes impõem uma educação para o trabalho alienante, com o objetivo de manter o homem dominado. Já a educação libertadora teria como função transformar o trabalhador em um agente político, que pensa, que age, e que usa a palavra como arma para transformar o mundo. Para ele, uma educação para além do capital deve, portanto, andar de mãos dadas com a luta por uma transformação radical do atual modelo econômico e político hegemônico.

Estudioso da obra de Marx, Mészáros acredita que a sociedade só se transforma pela luta de classes. Limitar, portanto, uma mudança educacional radical "às margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação qualitativa. [...] É por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente" .

Usando como referência duas grandes figuras da burguesia iluminista – o economista Adam Smith e o educador utópico Robert Owen –, o autor deste livro advoga que o capital é irreformável porque, pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é incontrolável e incorrigível. Seria, desse ponto de vista, absurdo esperar uma "formulação de um ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em vigor, que considerasse a hipótese da dominação dos servos, como classe, sobre os senhores da bem estabelecida classe dominante" . Naturalmente, o mesmo vale para a alternativa hegemônica fundamental entre capital e trabalho. Não surpreende, portanto, que "mesmo as mais nobres utopias educacionais, anteriormente formuladas do ponto de vista do capital, tivessem de permanecer estritamente dentro dos limites da perpetuação do domínio do capital como modo de reprodução social metabólica" .

Pequeno em tamanho, "A educação para além do capital" é um livro imenso em esperança e determinação. Nele, o filósofo marxista condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a idéia de que não existe alternativa à globalização capitalista. Em Mészáros, educar não é a mera transferência de conhecimentos, mas sim conscientização e testemunho de vida. É construir, libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que a história é um campo aberto de possibilidades. Esse é o sentido de se falar de uma educação para além do capital: educar para além do capital implica pensar uma sociedade para além do capital.

Aos leitores que queiram conhecer melhor as opiniões de István Mészáros sobre educação, sugiro a leitura do capítulo "A alienação e a crise da educação", sobre as utopias educacionais, em Marx: a teoria da alienação, a ser publicado pela Boitempo em 2005. Nessa obra, o pensador húngaro reafirma a necessidade de transcender as relações sociais de produção capitalistas, com o objetivo de conceber uma estratégia educacional socialista. Ele discute nesse texto o conceito de "educação estética" , tentativa isolada de enfrentar a desumanização do sistema educacional na sociedade capitalista. E conclui que a superação positiva da alienação é tarefa educacional que exige uma "revolução cultural" radical para ser colocada em prática.

A tradução que aqui se apresenta foi feita a partir do original em inglês Education Beyond Capital, por Isa Tavares, com texto final de Sérgio Luiz Mansur e Luis Gonzaga Fragoso. A revisão técnica coube à professora de Sociologia da Unesp, Maria Orlanda Pinassi. Nos textos de Mészáros, as notas de rodapé numeradas são do autor; as indicadas com asterisco são dos revisores da tradução e vêm marcadas no final com (N.R.T.).

Registro o agradecimento da editora a Sebastião Salgado, que autorizou o uso da foto que ilustra a capa (uma menina fazendo os deveres escolares e tomando conta dos irmãos enquanto a mãe trabalha) deste livro, cujos direitos autorais – assim como de toda a obra de Mészáros publicada pela Boitempo no Brasil – foram cedidos para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST.

* Ivana Jinkings é editora da Boitempo.

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Há um fino golpe no ar

Por Elio Gaspari, para O Globo e Folha de S. Paulo – 14/07/05

É golpista a articulação de uma renúncia de Lula à reeleição. Embrulhada numa Sacola da Daslu (o Bolsa-Família dos tucanos), ela funcionaria assim:

1 - Lula vai à televisão e anuncia que não disputará a reeleição.

2 - O Congresso aprova uma emenda constitucional que acaba com a reeleição e aumenta de quatro para cinco anos o mandato dos próximos presidentes da República.

3 - Desmoralizado, o companheiro vai para casa, o PT definha e o PSDB volta ao Planalto.

A idéia é golpista porque coloca a Constituição a reboque de um arranjo. As leis da terra dizem que o mandato de Lula vai até o dia 1º de janeiro de 2007, quando será substituído na Presidência pelo cidadão escolhido em 2006. Essas mesmas leis garantem ao companheiro o direito de disputar a reeleição.

O arranjo embute a cassação dos cidadãos encarregados de eleger o presidente da República. Cassa-lhes o direito de julgar Lula. Se ele quiser disputar a reeleição, duas coisas podem acontecer: ganha ou perde. Nos dois resultados, seu destino será decidido pela patuléia soberana que o pôs no Planalto em 2002.

Os hierarcas de Brasília não têm mandato para fazer um cambalacho que tira dos eleitores o direito de decidir a questão. Tem gente disposta a mostrar que continua confiando no presidente, assim como tem gente que venderia a cueca para ter o gosto de mandá-lo de volta para São Bernardo.

O interesse pela renúncia de Lula reflete dois tipos de receios. A desistência seria conveniente para preservá-lo. Uma espécie de trégua no andar de cima. Esse é o receio bem-intencionado. Maligno é o medo de que, uma vez candidato, Lula se reeleja. Afinal, se esse medo não existisse, a desistência seria desnecessária, por irrelevante.

Medo de voto é coisa perigosa. Não custa lembrar uma brilhante construção do jornalista Carlos Lacerda, em 1950: "O sr. Getúlio Vargas [...] não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito".

Até aí, tudo bem, mas Lacerda continua: "Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar". As desgraças da política nacional na segunda metade do século passado vinham das duas primeiras negativas: "não deve ser candidato" e "não deve ser eleito".

Era o medo da volta de Vargas, que virou medo da chegada de João Goulart e, mais tarde, tornou-se o medo (absolutamente despropositado) da vitória de Lula. Trata-se de um golpezinho esperto porque seria ratificado pela vítima. Como na mágica de 1961, quando João Goulart conformou-se com o parlamentarismo de mentirinha que salvou a face de uma revolta de generais derrotada nas ruas. É também um golpe bem-educado, pois assenta-se exclusivamente num conchavo parlamentar. Não rosna a força das armas nem a da rua.

Em 1840, com o Golpe da Maioridade, os mandarins do Império colocaram um garoto de 14 anos no trono do Brasil. Na República, sucederam-se os Golpes da Menoridade, todos destinados a substituir a vontade de um povo considerado incapaz. A idéia é sempre a mesma: em nome de uma conciliação destinada a aplacar as tensões da Guerra Fria (no século 20) ou dos mercados financeiros (no 21) aceita-se qualquer acordo, desde que a escumalha fique de fora.

Se Lula achar que deve disputar a reeleição, não se pode tirar do povo brasileiro o direito de decidir onde o companheiro vai morar.

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Quanto algumas ONGs ganham com a miséria?

Por Sério Domingues* – 06/06/05 

"Quanto vale ou é por quilo?" é o mais novo filme de Sérgio Bianchi. ONGs e entidades desonestas são acusadas de lucrarem com a miséria, usando dinheiro público. E ainda mostra como a miséria tem cor e endereço definidos. É negra e favelada.

Infelizmente o filme não vai chegar ao grande público. Mas é bastante didático e coloca o dedo na ferida da "indústria da solidariedade". Deveria ser visto em escolas, cursinhos populares, associações comunitárias. Mas sempre seguido de debates. Até para que ONGs e entidades sérias possam se defender. 

O filme começa com a história de uma escrava que conseguiu comprar sua liberdade, no final do século 18. Trabalhando e poupando, ela conseguiu ter uma pequena propriedade e alguns escravos. Mas, eis que aparecem alguns capitães-do-mato em seu rancho. São caçadores de escravos fugitivos. Eles prendem um de seus cativos. Ela protesta, mas não adianta. Seguindo os caçadores, ela vê que eles entregam o negro na casa de um senhor branco. A negra bate à porta do dito cujo. Mostra os papéis que provam ser ela a proprietária do escravo. O senhor branco fecha a porta na cara dela. Revoltada, ela grita: "lugar de ladrão é na cadeia". Resultado: é processada e condenada por perturbação da ordem pública. Trata-se de um caso verdadeiro. Ao longo do filme, eles se repetirão, com os devidos registros e datas.

Esta cena mostra que ser proprietário no Brasil não basta. É preciso ser branco também. Mesmo hoje, ter um automóvel novo e ser negro é motivo suficiente para ser vítima de batidas policiais ou coisa pior. Mas o caso revela outra coisa, também. É o mecanismo de repasse da dominação. A negra liberta também tem seus escravos. É natural, diz o narrador do filme. É assim que funcionava o sistema na época. Só que esse mecanismo continua a funcionar, diz o filme.

Para ilustrar isso há uma cena nos tempos de hoje. Uma Kombi chega na madrugada para ajudar mendigos. Distribuir cobertas, sopa e café. Logo em seguida, um outro grupo chega em outra perua. É expulso pela líder do primeiro veículo. Ela quase diz "esses mendigos são meus. Caiam fora". É a remediada ajudando os esfarrapados, para continuar recolhendo donativos e fazendo seu pé-de-meia.

Voltando ao passado escravista, o filme conta a história de uma escrava idosa que tenta juntar o dinheiro suficiente para se libertar. Conhece uma senhora branca que não é rica, mas é esperta. Paga a liberdade da velha escrava em troca do trabalho dela por mais um ano, pago com juros. O investimento dá resultado. A velhinha acaba tendo que trabalhar por mais 3 anos antes de se ver livre de sua "benfeitora".

O paralelo é claro. Tanto no tempo da escravidão, como na época atual, há um espaço para fazer jogadas. Num caso, são os brancos pobres explorando negros cativos. No outro, são empreendedores espertos da solidariedade transformando a miséria em fonte de riqueza. De um lado, continuam sendo quase todos brancos. De outro, quase todos são negros.

Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos

Os paralelos vão se multiplicando. Mais um caso antigo aparece. Fala sobre os capitães-do-mato da época da escravidão. A maioria era formada por negros. Viviam de caçar escravos fugidos. É o caso de um deles, que captura uma negra fugida. Ela está grávida e aborta no momento em que é entregue a seu dono. A negra sangra ao lado dos dois, enquanto o narrador explica que o dinheiro ganho pelo caçador servirá para que o filho tenha uma vida melhor que a dele.

De volta ao mundo atual, um desempregado é pressionado pela mulher grávida e pela tia a trazer dinheiro para casa. Desesperado, ele vira matador-de-aluguel. Suas vítimas são negras e pobres como ele. Não seria mais do que um capitão-do-mato moderno, e também procura um futuro melhor para seu filho. Apesar disso, a tia do matador explica que serviços como o que ele faz conta com gente muito mais profissional e treinada. Enquanto ela fala, aparece a cena mais corajosa do filme. Um camburão invade o calçadão da Praça da Sé no meio da madrugada. Os policiais arrancam crianças-de-rua de seu sono, ao pé de uma árvore. Jogam-nas dentro do compartimento dos presos. Tudo indica que o destino delas será o extermínio.

Continuam os casos registrados. Na época do império, um negro é alugado para fazer a contabilidade de uma empresa. Acusado de roubo, foge. É preso e violentamente espancado. Seu proprietário processa o dono da empresa que o alugou. Prova que o escravo não roubara nada. Exige indenização, dizendo que seu patrimônio foi danificado. Ganha a causa e recupera com lucros o investimento perdido na recuperação do escravo.

É desse jeito que nasceu o capitalismo. Seres humanos eram mercadorias. Depois no capitalismo maduro, tornaram-se menos do que isso. Apenas objetos de exploração. Mas hoje, também há os que nem isso são mais. São os desempregados, mendigos, presidiários, crianças abandonadas.

Nem por isso deixam de ser fonte de lucros, acusa o filme de Bianchi. Mas também sobram ataques aos governos. Há, por exemplo, uma propaganda governamental que conta as maravilhas envolvidas com a criação de empregos através da construção de presídios. Um outro comercial cita o dinamismo da ação solidária. Um entusiasmado locutor diz que cada criança desamparada gera 5 empregos. A lógica é óbvia. Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos!

Mas tudo isso tem uma galinha dos ovos de ouro. É o acesso aos fundos públicos. Seminários e cursos ensinam como agarrar essa galinha sem ficar só com as penas nas mãos. O caminho passa por conhecer a pessoa certa na hora certa e no lugar adequado. A taxa de acesso varia entre 15% e 20%, claro.

Uma conta muito didática é exposta. Diz o filme que são cerca de 10 mil crianças de rua no Brasil. As verbas públicas reservadas para dar conta do problema seriam de, mais ou menos, 1 milhão de reais. Este milhão dividido pelas 10 mil crianças seria suficiente para lhes pagar escola particular do primário até a faculdade, por exemplo. Mas esse dinheiro precisa passar por ONGs, entidades assistenciais e empresas "solidárias". Tal como no caso da senhora escrava e da branca esperta a liberdade tem intermediários prontos a lucrar com isso.

Entidades "pilantrópicas" seqüestram dinheiro público usando os pobres como reféns

O que parece ser uma alternativa a tudo isso surge com o personagem do presidiário negro. Numa cela superlotada ele olha para a câmera e explica "Quando éramos escravos, éramos máquinas. Investimentos de capital. Tínhamos que ser mantidos alimentados e saudáveis. Agora, somos escravos sem senhor". E conclui: "Na democracia, só existe liberdade para quem pode consumir".

Esse mesmo personagem foge da cadeia. Pagou para isso e, agora, quer recuperar o investimento. Seqüestra um dos sócios de uma ONG. Consegue receber o resgate, depois de enviar uma orelha e outros pedaços do refém à sua esposa. Chama a isso de redistribuição de renda.

Enquanto isso, a negra Arminda descobre o superfaturamento na compra dos computadores feita por uma ONG para sua comunidade. Consegue provas da maracutaia. Exige que a entidade use o dinheiro que desviou para comprar computadores decentes. Sem conseguir ser atendida, ela invade uma festa da entidade e grita: "Lugar de ladrão é na cadeia".

Diante disso, os pilantras e seus amigos políticos decidem resolver o problema. O matador-de-aluguel é convocado. Vai atrás de Arminda, tal como o capitão-do-mato fizera com a escrava fugida. Arminda morre com um tiro. O filme acaba. A sensação é de que não há saída. Mas, há um final alternativo.

Depois de iniciados os letreiros finais, a cena se repete. Dessa vez, Arminda convence o matador a poupar sua vida. Propõe formar um grupo para seqüestrar todos "os filhos da puta que roubam dinheiro do Estado". Agora sim, o filme acaba.

O problema é que o final alternativo também não aponta soluções. Claro que a vontade é concordar com Arminda e sair fazendo justiça com as próprias mãos. Mas, justiça será feita mesmo é coletivamente. A partir da organização dos de baixo para exigir políticas públicas reais. ONGs desonestas e entidades "pilantrópicas" devem ser condenadas. Elas seqüestram o dinheiro público usando os pobres como reféns. Mas, seqüestrar os seqüestradores não resolve. Eles só existem porque se beneficiam do esquema maior do poder. Da terrível distribuição de renda e da secular dominação racista.

Além disso, há o risco de valorizar demais as relações de dominação e exploração entre pobres e menos pobres. O principal é fazer mira nos poderosos, nos governos ou fora deles. O resto é conseqüência. De qualquer maneira, é um filme corajoso.
 
* Sério Domingues é sociólogo,  integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas.

Por Sério Domingues* – 06/06/05  

"Quanto vale ou é por quilo?" é o mais novo filme de Sérgio Bianchi. ONGs e entidades desonestas são acusadas de lucrarem com a miséria, usando dinheiro público. E ainda mostra como a miséria tem cor e endereço definidos. É negra e favelada.

Infelizmente o filme não vai chegar ao grande público. Mas é bastante didático e coloca o dedo na ferida da "indústria da solidariedade". Deveria ser visto em escolas, cursinhos populares, associações comunitárias. Mas sempre seguido de debates. Até para que ONGs e entidades sérias possam se defender.  

O filme começa com a história de uma escrava que conseguiu comprar sua liberdade, no final do século 18. Trabalhando e poupando, ela conseguiu ter uma pequena propriedade e alguns escravos. Mas, eis que aparecem alguns capitães-do-mato em seu rancho. São caçadores de escravos fugitivos. Eles prendem um de seus cativos. Ela protesta, mas não adianta. Seguindo os caçadores, ela vê que eles entregam o negro na casa de um senhor branco. A negra bate à porta do dito cujo. Mostra os papéis que provam ser ela a proprietária do escravo. O senhor branco fecha a porta na cara dela. Revoltada, ela grita: "lugar de ladrão é na cadeia". Resultado: é processada e condenada por perturbação da ordem pública. Trata-se de um caso verdadeiro. Ao longo do filme, eles se repetirão, com os devidos registros e datas.

Esta cena mostra que ser proprietário no Brasil não basta. É preciso ser branco também. Mesmo hoje, ter um automóvel novo e ser negro é motivo suficiente para ser vítima de batidas policiais ou coisa pior. Mas o caso revela outra coisa, também. É o mecanismo de repasse da dominação. A negra liberta também tem seus escravos. É natural, diz o narrador do filme. É assim que funcionava o sistema na época. Só que esse mecanismo continua a funcionar, diz o filme.

Para ilustrar isso há uma cena nos tempos de hoje. Uma Kombi chega na madrugada para ajudar mendigos. Distribuir cobertas, sopa e café. Logo em seguida, um outro grupo chega em outra perua. É expulso pela líder do primeiro veículo. Ela quase diz "esses mendigos são meus. Caiam fora". É a remediada ajudando os esfarrapados, para continuar recolhendo donativos e fazendo seu pé-de-meia.

Voltando ao passado escravista, o filme conta a história de uma escrava idosa que tenta juntar o dinheiro suficiente para se libertar. Conhece uma senhora branca que não é rica, mas é esperta. Paga a liberdade da velha escrava em troca do trabalho dela por mais um ano, pago com juros. O investimento dá resultado. A velhinha acaba tendo que trabalhar por mais 3 anos antes de se ver livre de sua "benfeitora". 

O paralelo é claro. Tanto no tempo da escravidão, como na época atual, há um espaço para fazer jogadas. Num caso, são os brancos pobres explorando negros cativos. No outro, são empreendedores espertos da solidariedade transformando a miséria em fonte de riqueza. De um lado, continuam sendo quase todos brancos. De outro, quase todos são negros.

Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos

Os paralelos vão se multiplicando. Mais um caso antigo aparece. Fala sobre os capitães-do-mato da época da escravidão. A maioria era formada por negros. Viviam de caçar escravos fugidos. É o caso de um deles, que captura uma negra fugida. Ela está grávida e aborta no momento em que é entregue a seu dono. A negra sangra ao lado dos dois, enquanto o narrador explica que o dinheiro ganho pelo caçador servirá para que o filho tenha uma vida melhor que a dele.

De volta ao mundo atual, um desempregado é pressionado pela mulher grávida e pela tia a trazer dinheiro para casa. Desesperado, ele vira matador-de-aluguel. Suas vítimas são negras e pobres como ele. Não seria mais do que um capitão-do-mato moderno, e também procura um futuro melhor para seu filho. Apesar disso, a tia do matador explica que serviços como o que ele faz conta com gente muito mais profissional e treinada. Enquanto ela fala, aparece a cena mais corajosa do filme. Um camburão invade o calçadão da Praça da Sé no meio da madrugada. Os policiais arrancam crianças-de-rua de seu sono, ao pé de uma árvore. Jogam-nas dentro do compartimento dos presos. Tudo indica que o destino delas será o extermínio.

Continuam os casos registrados. Na época do império, um negro é alugado para fazer a contabilidade de uma empresa. Acusado de roubo, foge. É preso e violentamente espancado. Seu proprietário processa o dono da empresa que o alugou. Prova que o escravo não roubara nada. Exige indenização, dizendo que seu patrimônio foi danificado. Ganha a causa e recupera com lucros o investimento perdido na recuperação do escravo.

É desse jeito que nasceu o capitalismo. Seres humanos eram mercadorias. Depois no capitalismo maduro, tornaram-se menos do que isso. Apenas objetos de exploração. Mas hoje, também há os que nem isso são mais. São os desempregados, mendigos, presidiários, crianças abandonadas.

Nem por isso deixam de ser fonte de lucros, acusa o filme de Bianchi. Mas também sobram ataques aos governos. Há, por exemplo, uma propaganda governamental que conta as maravilhas envolvidas com a criação de empregos através da construção de presídios. Um outro comercial cita o dinamismo da ação solidária. Um entusiasmado locutor diz que cada criança desamparada gera 5 empregos. A lógica é óbvia. Multiplicar o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos!

Mas tudo isso tem uma galinha dos ovos de ouro. É o acesso aos fundos públicos. Seminários e cursos ensinam como agarrar essa galinha sem ficar só com as penas nas mãos. O caminho passa por conhecer a pessoa certa na hora certa e no lugar adequado. A taxa de acesso varia entre 15% e 20%, claro.

Uma conta muito didática é exposta. Diz o filme que são cerca de 10 mil crianças de rua no Brasil. As verbas públicas reservadas para dar conta do problema seriam de, mais ou menos, 1 milhão de reais. Este milhão dividido pelas 10 mil crianças seria suficiente para lhes pagar escola particular do primário até a faculdade, por exemplo. Mas esse dinheiro precisa passar por ONGs, entidades assistenciais e empresas "solidárias". Tal como no caso da senhora escrava e da branca esperta a liberdade tem intermediários prontos a lucrar com isso.

Entidades "pilantrópicas" seqüestram dinheiro público usando os pobres como reféns

O que parece ser uma alternativa a tudo isso surge com o personagem do presidiário negro. Numa cela superlotada ele olha para a câmera e explica "Quando éramos escravos, éramos máquinas. Investimentos de capital. Tínhamos que ser mantidos alimentados e saudáveis. Agora, somos escravos sem senhor". E conclui: "Na democracia, só existe liberdade para quem pode consumir".

Esse mesmo personagem foge da cadeia. Pagou para isso e, agora, quer recuperar o investimento. Seqüestra um dos sócios de uma ONG. Consegue receber o resgate, depois de enviar uma orelha e outros pedaços do refém à sua esposa. Chama a isso de redistribuição de renda.

Enquanto isso, a negra Arminda descobre o superfaturamento na compra dos computadores feita por uma ONG para sua comunidade. Consegue provas da maracutaia. Exige que a entidade use o dinheiro que desviou para comprar computadores decentes. Sem conseguir ser atendida, ela invade uma festa da entidade e grita: "Lugar de ladrão é na cadeia". 

Diante disso, os pilantras e seus amigos políticos decidem resolver o problema. O matador-de-aluguel é convocado. Vai atrás de Arminda, tal como o capitão-do-mato fizera com a escrava fugida. Arminda morre com um tiro. O filme acaba. A sensação é de que não há saída. Mas, há um final alternativo.

Depois de iniciados os letreiros finais, a cena se repete. Dessa vez, Arminda convence o matador a poupar sua vida. Propõe formar um grupo para seqüestrar todos "os filhos da puta que roubam dinheiro do Estado". Agora sim, o filme acaba.

O problema é que o final alternativo também não aponta soluções. Claro que a vontade é concordar com Arminda e sair fazendo justiça com as próprias mãos. Mas, justiça será feita mesmo é coletivamente. A partir da organização dos de baixo para exigir políticas públicas reais. ONGs desonestas e entidades "pilantrópicas" devem ser condenadas. Elas seqüestram o dinheiro público usando os pobres como reféns. Mas, seqüestrar os seqüestradores não resolve. Eles só existem porque se beneficiam do esquema maior do poder. Da terrível distribuição de renda e da secular dominação racista.

Além disso, há o risco de valorizar demais as relações de dominação e exploração entre pobres e menos pobres. O principal é fazer mira nos poderosos, nos governos ou fora deles. O resto é conseqüência. De qualquer maneira, é um filme corajoso.
 

* Sério Domingues é sociólogo,  integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas.

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A contra-hegemonia chega à TV

Por Gustavo Barreto* - 06/06/05

Imagine um canal de televisão que se proponha a combater o "discurso único" das grandes redes globais de comunicação, todas com sede nos países ricos. Uma tevê que mostre o sul com os olhos do sul, revelando tudo o que vem sendo sonegado ao público sobre as verdadeiras lutas sociais e de libertação travadas pelos povos latino-americanos. Uma emissora para romper com o bloqueio informativo imposto pelas emissoras dos países do norte hegemônico, construindo uma alternativa concreta e de grande alcance para a democratização da informação em escala internacional. Um canal que sirva, enfim, como instrumento de integração dos povos de toda a América, estimulando a participação de comunicadores populares e dos movimentos sociais latino-americanos. Difícil imaginar?

Pois é exatamente esta a proposta da Telesur, que entrou no ar às 13 horas do dia 24 de maio, com duas horas de programação e em caráter experimental, e foi transmitido pela TV Comunitária de Brasília, que acumulará também a função de sucursal brasileira da emissora. Seu sinal de satélite — NSS 806 - pode ser captado da Patagônia até o Canadá. Em Caracas (Venezuela), sede da multi-estatal, as transmissões se iniciaram com uma entrevista coletiva que contou com a participação de representantes de Venezuela, Uruguai, Argentina e Cuba — países que investiram o capital inicial para a fundação da emissora.

Ampla estrutura

O lançamento oficial da programação da emissora está previsto para o dia 24 de julho, data em que é comemorado o nascimento de Simon Bolívar, com transmissão de três segmentos diários de oito horas. As reproduções se darão, em um primeiro momento, a partir da solidariedade de diversas emissoras públicas, educativas, universitárias e comunitárias. O sinal é capitado via satélite e o equipamento é relativamente barato para as tevês que quiserem reproduzir o material — menos de R$ 1.500, preço irrisório perto dos orçamentos usuais de tevê. O dinheiro diz respeito a um receptor digital de 400BX, uma antena para sintonizar os canais e um técnico para manusear o equipamento.

Já existem sucursais estruturadas em nove países, inclusive em Washington, nos Estados Unidos, profissionais em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, além de correspondentes em Buenos Aires, La Paz, Havana, Cidade do México, Montevidéu, Nova Iorque e Bogotá. O Brasil, formalmente, não se associou à nova empresa, mas o país é uma peça fundamental do ponto de vista operativo e logístico para a Telesur, porque vai colaborar com os países associados através de dezenas de convênios.

Com uma programação bilingüe — em espanhol e português —, a Telesur transmitirá em 40% do tempo programas jornalísticos, entre noticiários, entrevistas e reportagens. Seus organizadores prometem um jornalismo comprometido com a missão de integrar os povos latino-americanos, resgatando sua verdadeira história de lutas libertárias e defendendo suas tradições, sua cultura, sua arte e seu direito à auto-determinação.

Memória e luta dos povos

O jornalista brasileiro Beto Almeida, diretor multinacional da emissora, explica a proposta. "Nós faremos um jornalismo não panfletário, mas que não será imparcial. O que queremos é revelar a nobreza dos povos em luta e não permitir o esquecimento", disse à Agência Brasil na última quarta (25/5). Já Jorge Enrique Botero, diretor de informação, descartou qualquer comparação que se faça com a CNN ou Al Jazeera. "Telesur é um canal para que nos conheçamos, para vermos-nos com nossos próprios olhos".

Os outros 60% exibirão material de produtores independentes, produções do cinema latino-americano, emissoras de televisão regionais comunitárias e universitárias e de organizações sociais de toda a região. A linguagem visual, como não poderia deixar de ser, remete à história da América Latina. "As bases serão feitas pela informação, retomando a crônica, a reportagem, a entrevista, a investigação, sem se prender ao imediatismo", afirmou o uruguaio Aram Aharonian, vice-presidente e diretor-geral da Telesur.

Promessa de independência

Aram Aharonian, diretor-geral da emissora, explicou que o financiamento para a construção da emissora provém dos estados que compõem a empresa multinacional. "Agora estamos estudando um novo modelo de financiamento". A Telesur foi fundada com um capital inicial de US$ 10 milhões, bancados por Venezuela (51%), Argentina (20%), Cuba (19%) e Uruguai (10%).

De acordo com Gabriel Moriotto, secretário de mídia da Argentina, a Telesur será uma emissora "horizontal, pluralista, ampla e democrática". Moriotto disse não se preocupar com possíveis interferências de governantes na programação da Telesur. "Esse paradigma não funciona mais. As nossas sociedades estão maduras e não há espaço para confundir Estados e governos", disse.

"Não é uma arma para estimular modelos políticos, não é uma ferramenta de difusão de ideologias sobre outros países. A diversidade é a filosofia de programação da Telesur", disse Andrés Izarra, ministro venezuelano de Informação e Comunicação, numa coletiva de imprensa no Teatro Teresa Carreño, em Caracas. Com agências nacionais e internacionais. Mais informações em www.telesurtv.net

* Gustavo Barreto é editor da revista Consciência.Net (www.consciencia.net), colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação (www.piratininga.org.br), estudante de Comunicação Social da UFRJ e bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC) pela ECO/UFRJ. Contato por e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

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Somos capazes de alimentar o país

Por Romário Rossetto * - 30/05/05

A Agricultura Camponesa, responsável por mais da metade da produção agrícola brasileira tem resistido bravamente, ao longo da história, às políticas governamentais excludentes, que são aliadas aos interesses das classes dominantes. Nossa história é marcada pela luta entre dois modelos de agricultura. De um lado, está o agronegócio - agricultura capitalista, baseada na monocultura, incapaz de alimentar a população e que ainda utiliza a terra de forma altamente mecanizada e usa agrotóxico, e organismos geneticamente modificados que são prejudiciais à saúde. Do outro lado, temos a agricultura camponesa - baseada no policultivo, na mão-de-obra familiar, na produção de alimentos saudáveis e no auto-sustento.

A imprensa burguesa massacra os camponeses com a disseminação da idéia de que a agricultura camponesa é pobre e não proporciona nenhum desenvolvimento para o país. Hoje no País, existem cerca de oito milhões de famílias camponesas, sendo posseiros, arrendatários não capitalistas, parceiros, varzeiros, ribeirinhos, pescadores artesanais, lavradores, agroextrativistas, quebradeiras de coco, povos indígenas, quilombolas e assentados. Esses camponeses produzem cerca de 70% do feijão, 84% da mandioca, 58% da produção de suínos, 54% do leite bovino, 49% do milho e 40% das aves e ovos.

A maior parte do volume de financiamento do Governo vai para os agronegócio. Para a safra 2004/2005 as pequenas propriedades receberam apenas R$ 7 bilhões, enquanto para o agronegócio foram destinados R$ 39,5 bilhões. Em 2003, dez grandes grupos econômicos multinacionais obtiveram R$ 4,3 bilhões do Banco do Brasil, quantidade praticamente igual a que 1,3 milhão de camponeses acessaram, ou seja, cerca de R$ 4,5 bilhões para a safra 2002/2003.

Ao contrario do que muita gente pensa, a agricultura de grande escala gera pouco emprego e causa um êxodo rural, que os centros urbanos não são capazes de absorver com dignidade. As pequenas unidades de produção envolvem mais de 14,4 milhões de trabalhadores rurais, ou seja, 86,6% do total. Enquanto isso, os latifúndios são responsáveis por apenas 2,5% dos empregos, o que corresponde a pouco mais de 420 mil postos de trabalho.

A existência desse atual sistema agrícola excludente, que consiste em expulsar pequenos e médios proprietários do campo, tem por objetivo exterminar a agricultura camponesa. Essa agricultura, tão criminalizada pela mídia, é formada por uma grande diversidade cultural adquirida durante séculos e exerce um papel fundamental na preservação ambiental, no combate à fome e a pobreza e na consolidação do campo.

Nós do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e outros movimentos sociais do campo temos o dever de conscientizar nossos agricultores e a sociedade em geral, da importância de um novo modelo agrícola para o Brasil. E uma das nossas principais bandeiras é a defesa da soberania alimentar dos povos para que possamos decidir sobre nossa própria política agrícola e alimentar.

* Romário Rossetto Direção Nacional do Movimento de Pequenos Agricultores. Colaborou com este artigo para a Agência Adital.

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Igualdade de gênero e participação política

Por Flávia Piovesan* – 27/05/05

Em pesquisa recente a respeito da diferença de direitos entre homens e mulheres, divulgada pelo Fórum Econômico Mundial em 16 de maio, o Brasil alcançou a 51a posição, considerando 58 países -- 30 pertencentes à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico e outros 28 países em desenvolvimento. Foram considerados cinco fatores: participação econômica; oportunidade econômica; atuação política; acesso à educação; e saúde e bem-estar.

Ainda que à frente, nas primeiras posições, despontem os países escandinavos, como Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia, países latino-americanos, como a Colômbia, o Uruguai e a Argentina ocupam uma posição bem mais avançada que a do Brasil, estando, respectivamente, em 30o, 32o e 35o lugar. Note-se que até o Zimbábue e a Indonésia revelam melhor situação, ocupando o 42o e o 46o lugar. No quesito participação política das mulheres, o Brasil é o penúltimo da lista, perdendo apenas para a Jordânia.

O que pode explicar o acentuado e preocupante grau de desigualdade entre homens e mulheres no Brasil, especialmente no campo da participação política?

No horizonte histórico de construção dos direitos das mulheres, jamais se caminhou tanto quanto nas últimas três décadas. Elas compõem o marco divisório em que se concentram os maiores avanços em prol da igualdade de gênero, decorrentes, sobretudo, da capacidade de articulação e mobilização do movimento de mulheres.

No plano jurídico, à luz da Constituição Federal de 1988 (que incorporou a maioria significativa das reivindicações das mulheres) e dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos adotados pelo Brasil, resta assegurada a plena igualdade entre os gêneros no exercício dos direitos civis e políticos, sendo vedada qualquer discriminação contra a mulher.

Todavia, os dados da realidade brasileira invocam a distância entre os avanços normativos e as práticas sociais, que refletem um padrão discriminatório em relação às mulheres.

No campo dos direitos políticos, ainda é bastante reduzida a participação de mulheres no âmbito dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

No Poder Legislativo, em 2001, a média nacional de participação de mulheres correspondia a 11,54%, enquanto que a participação de homens correspondia a 88,46%. Observe-se que as mulheres compõem 50,48% do eleitorado nacional. A direção dos próprios partidos políticos não se mostra igualitária no que tange ao gênero, destacando-se que a participação de mulheres em 2000 apontava a 12%. Este percentual reflete exatamente a participação das mulheres na poder Legislativo, o que retrata a perpetuação da desigualdade de gênero nestas distintas instâncias de participação política.

No Poder Executivo a participação de mulheres, em cargos públicos eletivos, atém-se a 5,71%, enquanto que a participação masculina aponta a 94,29% (dados de 2001). Nos quadros da Administração Pública, embora as mulheres sejam 52,14% dos servidores públicos na esfera da Administração Direta, estão representadas em maior concentração em cargos de menor hierarquia funcional. Na medida em que se avança nos cargos de maior hierarquia funcional, o número de mulheres decresce significativamente. A título exemplificativo, aponte-se que as mulheres compõem 45,53% dos cargos DAS1 (hierarquia inferior) e apenas 13,24% dos cargos DAS6 (hierarquia superior).

No Poder Judiciário, até 2000, não havia qualquer mulher na composição dos Tribunais Superiores. Em 1998, a participação de mulheres era de apenas 2%, sendo que, em 2001, este percentual elevou-se a 8,20%. No tocante às 1a e 2a instâncias jurisdicionais, a elevada participação das mulheres (em média 30% na 1a instância) explica-se pelo fato desses cargos serem ocupados por concurso público e não por indicação política, como ocorre nas instâncias superiores.

Embora as mulheres sejam mais da metade da população nacional, sua representatividade nos quadros dos Poderes Públicos está muito aquém dos 50%, alcançando, no máximo, o percentual de 12% (no caso do Legislativo).

A reduzida participação de mulheres nos postos decisórios traduz a dicotomia entre os espaços público e privado, que acaba por condicionar o exercício de seus direitos mais fundamentais. Se ao longo da história atribuiu-se às mulheres o domínio do privado, a esfera doméstica da casa e da família, gradativamente testemunha-se a reinvenção dos espaços público e privado. Constata-se a crescente democratização do espaço público, mediante a participação ativa de mulheres nas mais diversas arenas sociais. Contudo, resta o desafio de democratização do espaço privado – cabendo ponderar que tal democratização é fundamental para a própria democratização do espaço público.

Daí a relação de interdependência entre os direitos políticos e os direitos civis. Vale dizer, o pleno exercício dos direitos políticos das mulheres requer e pressupõe o pleno exercício de seus direitos civis e vice-versa. Ressalte-se que, até o advento da Constituição de 1988, era legalizada a hierarquia entre os gêneros e a desigualdade absoluta das mulheres no campo dos direitos civis, com base no Código Civil de 1916, apenas revogado em 2002, com a aprovação do novo Código, que veio a romper com o legado discriminatório em relação à mulher.

O maior desafio é introjetar e propagar os valores igualitários e democratizantes consagrados na Constituição e nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, compondo um novo paradigma, emancipatório, capaz de transformar valores sociais e práticas culturais discriminatórias, assegurando o exercício da cidadania civil e política das mulheres brasileiras, nos espaços público e privado, em sua plenitude e com inteira dignidade.

* Flávia Piovesan é professora doutora da PUC-SP nas disciplinas de Direito Constitucional e Direitos Humanos, professora de Direitos Humanos do Programa de Pós Graduação da PUC-SP e do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento na Universidade Pablo Olavide (Espanha), visiting fellow do Programa de Direitos Humanos da Harvard Law School (1995 e 2000), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do Estado de São Paulo.

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