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Oficiais de justiça enfrentam falta de articulação institucional e maiores riscos nas diligências durante a pandemia

Servidor já foi proibido de ingressar com máscara em unidade prisional e colega recebeu 15 mandados presenciais para cumprir de uma vez em penitenciárias; segmento cobra EPIs e padronização de procedimentos.

Sintrajud/SP

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, os oficiais de justiça vêm atuando sob risco maior que o já enfrentado corriqueiramente. Há anos o segmento e o Sindicato denunciam a exposição destes servidores às violências físicas e psicológicas. Agora, cumprir diligência virou também sinônimo de medo de um vírus que já matou mais de sete mil pessoas no país e vitimou três colegas da categoria no estado de São Paulo – ainda que em nenhum desses três casos tenha sido comprovado nexo com o exercício profissional.

“A atividade do oficial de justiça é essencial. Sem ele o Poder Judiciário não anda, já que as decisões são materializadas pelo segmento. Muitas vezes não é possível implementar uma decisão por e-mail ou WhatsApp, mas somente com o deslocamento do oficial de justiça até o local onde a diligência tem que ser feita. Não dá para fazer penhora de veículo ou imóvel, uma avaliação, uma busca e apreensão, uma condução coercitiva, alguns tipos de citações e intimações, sem um oficial. Todos os magistrados e quase todos os servidores internos podem desenvolver seus trabalhos na segurança de seus lares, mas a atividade do oficial tem essa peculiaridade”, ressalta o oficial de justiça da Justiça Federal Marcos Trombeta, coordenador da associação do segmento. Marcos tem atuado junto com a direção do Sindicato, ao qual é filiado, para buscar soluções para os problemas no exercício funcional do segmento.

Ele ressalta que os riscos estão aumentados para os colegas. “Não só pela violência urbana, mas porque muitas vezes é o oficial quem leva a comunicação de uma decisão que quase sempre vai contrariar quem recebe – uma dívida, um crime, algum ilícito. Quem recebe a decisão contra seus interesses tem no oficial o representante do Estado em quem vai descontar a raiva. Neste momento, além do risco que sempre existiu, há também o risco de contaminação pelo coronavírus. Ainda mais aqui no estado, onde a pandemia está particularmente grave e evidencia a insalubridade da atuação”, completa Trombeta.

Assegurar direitos sem ter os seus garantidos
Os oficiais são também os servidores que levam a garantia de direitos previstas nas decisões judiciais, como por exemplo, direito de internação neste período. Mas eles mesmos não estão tendo garantidos os seus direitos como cidadãos e trabalhadores. A falta de equipamentos de proteção individual e de procedimentos padronizados no Judiciário e nas demais instituições do Estado também incomoda os oficiais. “Isso é uma reclamação em todos os locais, é uma preocupação o fato em si e o pessoal ter que se virar. Junto com a questão do bom senso dos juízes sobre o que efetivamente é emergencial”, destaca Lucas José Dantas, diretor do Sintrajud e oficial de justiça em Osasco.

No início do período de quarentena, após intervenção do Sindicato, foi assegurado que apenas quatro oficiais atuariam por plantão na Central Unificada da capital (Ceuni), dois na área cível e dois na criminal. As turmas de plantão são compostas por 15 profissionais, e na primeira semana da quarentena a Justiça Federal tentou que tudo continuasse funcionando como em tempos normais. Mas a administração reconheceu que não era possível em reunião com as diretoras do Sintrajud Luciana Carneiro e Maria Ires Lacerda, em 20 de março.

Embora o número de mandados presenciais tenha caído bastante, servidores já viveram situações que precisam de solução emergencial das administrações da Justiça Federal e do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

Oficiala há 18 anos e atualmente lotada na Ceuni, Andréa Cristina Anbar recebeu na segunda-feira (27 de abril) 15 mandados criminais – 14 a serem cumpridos na Penitenciária Feminina da Capital, no bairro do Carandiru, e um na Penitenciária Feminina de Santana, ambos na zona Norte paulistana. Entre as designações havia intimações de audiência urgentes e de sentença, mas também citações e intimações diversas.

A unidade prisional da Capital já recebe mandados eletronicamente, mas a oficiala só descobriu esta informação por meio de contato telefônico – um gasto pessoal, já que a Central está fechada e o Tribunal não custeia esse tipo de despesa. O contato prévio era importante porque os presídios femininos realizam um processo de triagem das internas antes de autorizarem a ida delas ao parlatório, o que torna as diligências mais demoradas.

Se tivesse de cumprir todos os mandados, provavelmente Andréa não conseguiria fazer as 14 diligências no mesmo dia, ainda que permanecesse horas seguidas na unidade. E mesmo com a possibilidade de fazer as intimações por videoconferência, o tempo mínimo informado pela Penitenciária entre a liberação das internas para acesso ao parlatório virtual seria de 20 minutos, o que também impossibilitaria cumprir todos os mandados num dia.

Andréa então foi informada que, se cumprisse pessoalmente as diligências, todas as mulheres que ainda se encontravam naquela penitenciária estariam aguardando por ela no parlatório e que não havia nenhum caso de Covid-19 confirmado na unidade. Os demais mandados foram devolvidos certificados pela oficiala sobre a transferência das presas para outras unidades, para expedição de novos determinações judiciais.

A Penitenciária de Santana não adota ainda o sistema de diligência eletrônica – assim como várias unidades prisionais no Estado – e Andréa fez também o cumprimento presencial deste mandado.

“A gente sabe que a matéria penal muitas vezes exige mesmo medidas urgentes, mas a gente fica a critério do juiz, e pelo que percebi nesses últimos tempos cada um está adotando um critério, não houve um entendimento uniforme. Então, essas audiências de instrução e julgamento ou oitivas de testemunhas marcadas para acontecer agora não questiono, porque talvez o processo exija. Mas outros mandados, de citação e intimação, não vi adequação ao critério de urgência porque os prazos estão suspensos. No entanto, o oficial recebe e, já que é uma determinação judicial, cumpre”, avalia Andréa.

De acordo com a oficiala, entre os 15 mandados designados para ela, no máximo seis eram referentes a audiências agendadas. “Cada unidade prisional está procedendo de determinada maneira, e dentro da própria Justiça a gente tem juízes que estão interpretando a portaria a sua maneira”, relata.

Sem máscara no maior CDP do estado
O oficial de justiça Maurício Sinzato viveu situação ainda mais complexa no dia 31 de março. Designado para cumprir diligência no Centro de Detenção Provisória IV, foi informado que a unidade não estava autorizando advogados e oficiais de justiça a ingressarem na unidade com máscara. O oficial então teve que se expor ao risco, apesar de ter comprado materiais de proteção. O CDP fica no bairro paulistano de Pinheiros e notificou ao menos três casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 no complexo prisional. Um deles era o interno a quem Maurício tinha de intimar.

A precaridade da estrutura prisional aumenta as dificuldades. No CDP de Pinheiros não há sistema de interfone no parlatório. Somente um vidro com orifícios para difusão da voz separa os presos dos visitantes, advogados ou oficiais – favorecendo o contágio de todos.

“Se você fica a uma distância de quase dois metros, como é orientado, tem que gritar para ele te ouvir. E ficam vários presos no parlatório. No meu dia, havia sete. O mais assustador foi que na decisão da juíza constava que o preso [que eu intimaria] estava com suspeita de Covid. [A intimação] era para ele pagar a fiança para poder sair de lá, informando que o alvará de soltura só ia ser expedido se ele pagasse. E lá dentro o preso não tem álcool gel, máscara, nada. Além disso, no parlatório a gente tem que entregar o mandado para o preso receber e pegar de volta. E eu fiz tudo com equipamentos meus. Só depois de dois ou três dias me informaram que eu poderia retirar o material. Mas aí eu tive que registrar que dentro do presídio não podia usar o EPI. E tem as outras questões do funcionamento. Eu tive que aguardar por três horas na recepção até conduzirem o preso para falar comigo”, relata o servidor.

Neste dia, Maurício conta que nenhum dos funcionários do CDP com os quais teve contato usava máscara ou outro equipamento de proteção.

“O que eu fiz foi improvisar. Usei uma capa de chuva e um [par de] tênis velhos, que descartei depois, além da máscara e do álcool em gel que eu comprei. Guardei o mandado num saco plástico no qual passei álcool gel, e foi isso. E a gente tem que passar pelo setor de identificação, pelo scanner e o corredor até o parlatório. Como é um CDP, vários presos trabalham lá dentro, e tive que percorrer todo o caminho sem máscara, o que eu até entendo porque é uma questão de segurança até para eles”, conta.

Maurício, no entanto, avalia que o ideal seria que o cumprimento desses mandados por e-mail, como já estão sendo efetivados os alvarás de soltura e intimações para as audiências por teleconferência. “Sem a necessidade de o oficial de justiça ir até lá ou, se for, ir até a administração e esta receber o mandado e se incumbir de fazer chegar ao preso e do recolhimento para nos devolver”, aponta.

Procurada pela reportagem, a supervisão do CDP IV informou no dia 4 de maio que os oficiais de justiça já estão autorizados a ingressar no presídio usando máscaras. Houve adequação de procedimentos desde o início da pandemia, após denúncias da Defensoria Pública e entidades de direitos humanos, já que a circulação de agentes penitenciários dentro e fora dos presídios, a entrada de fornecedores (de alimentação e itens de higiene e outros serviços) também expõe a risco os detentos.

Apesar de o governo e a Secretaria de Administração Penitenciária não reconhecerem todos os casos, o sindicato dos agentes penitenciários (Sifupesp) relata em seu site 76 infecções e 65 registros suspeitos de Covid-19 entre trabalhadores do sistema carcerário paulista neste dia 6 de maio, além de cinco óbitos. Um outro agente, morto em 2 de maio, fora diagnosticado com dengue hemorrágica, mas foi testado para o coronavírus. O resultado ainda não tinha sido divulgado até a publicação deste texto.

Em 30 de abril, de acordo com levantamento realizado pelo jornal ‘O Estado de S.Paulo’, seis presos tinham morrido por causa da doença no sistema penitenciário paulista e haveria 11 casos confirmados.

“O presídio é o lugar dos esquecidos do mundo. Ninguém vai lembrar dessas pessoas. E é sinônimo de aglomeração. Não tem como falar ‘mantenha a distância’. Então é claro que [o contágio] vai se espalhar”, resumiu Maurício.

Os episódios vividos por Andréa, Maurício e demais oficiais de justiça expõem a falta de interlocução e articulação dentro do Judiciário Federal e entre as diversas instituições. A adoção de procedimentos padronizados facilitaria o processo de administração de justiça e evitaria expor os servidores do Judiciário Federal e das unidades prisionais, e também as pessoas em situação carcerária, à disseminação do vírus, dado que o período de incubação e transmissão assintomática pode chegar a 14 dias.

‘Ligue antes de vir, mas no dia’
O Sindicato também recebeu a informação de que a Penitenciária de Franca teria proibido o ingresso no ambiente prisional. Em contato com a unidade, a reportagem foi informada que os oficiais podem entrar no local, mas têm que ligar antes, “no dia em que vierem”, porque foi limitado a dois o número de servidores que podem cumprir diligências a cada hora. Das 8 horas às 17 horas, quando o exercício funcional é permitido, os oficiais de justiça têm que se adequar à regra que visa conter a propagação do coronavírus.

Cada um na sua
O oficial Cézar Adriano teve de cumprir um mandado de intimação em um processo que envolvia a apreensão de respiradores em uma unidade particular de saúde em favor de serviços públicos da rede do SUS. Entre os intimados estava a Secretaria Estadual de Saúde, localizada no complexo do Hospital das Clínicas. “Só que o mandado chegou para ser cumprido num fim de semana, quando a Secretaria não tem expediente. Como era um caso urgente fui até o local, enquanto outro colega pesquisava os endereços e e-mails dos demais citados, de sua casa. No local, fui atendido por um vigilante”. O colega que fazia as pesquisas na internet conseguiu um contato da Secretaria de Segurança Pública e o filho do secretário se prontificou a pesquisar o e-mail do gabinete do Secretário de Saúde e então o mandado foi cumprido. “Tudo poderia ter sido mais simples e menos arriscado se os órgãos divulgassem claramente os seus meios de contato”, relato o oficial à reportagem.

O dirigente do Sintrajud e oficial de justiça Lucas Dantas lembra ainda a polêmica sobre respiradores havida entre a administração municipal de Cotia, o governo do Estado e a União. “Foram diversos mandados que saíram, e quem cumpriu esses mandados teve que ir até a casa do prefeito, ao hospital de campanha que estava em construção, tudo sem equipamento de proteção. E a gente tem recebido mandados que têm urgência questionável. Eu mesmo tive de cumprir um mandado de intimação de uma construtora que estava envolvida num financiamento junto à Caixa, era só para reintegrar o interessado no contrato de construção do imóvel”, relata.

Questionada pela reportagem sobre o diálogo institucional necessário e os procedimentos, a Diretoria do Foro negou-se a responder via assessoria de comunicação. Foi solicitada a formalização do pedido por ofício ou via SEI (Sistema Eletrônico de Informações), o que sempre demora um tempo maior do que a dinâmica jornalística e a possibilidade a retomada da contagem de prazos permitem esperar.

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