Fim do Regime Jurídico único: Os Enormes Impactos dessa Mudança

Por Charles da Costa Bruxel

O Supremo Tribunal Federal, nesta quarta-feira (06/11/24), julgou o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.135, tendo decidido que a alteração promovida no caput do art. 39 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional n. 19/1998 foi constitucional. O julgamento do mérito foi em sentido contrário à medida cautelar, deferida em 2007, que havia suspendido “a eficácia do artigo 39, caput, da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998”.

Mas o que isso significa? Para entender melhor a mudança, apresenta-se um quadro comparativo:

Redação original do caput do art. 39 da CRFB/88 Redação dada pela EC n. 19/1998
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes.

A nova redação do art. 39, caput, da CRFB/88 é praticamente inútil. O problema está justamente naquilo que “deixou de ser dito”. Com a revogação do caput original do art. 39 da CRFB/88, a Constituição deixou de obrigar a instituição de um regime jurídico único em cada respectivo ente público e deixou de trazer a obrigação geral de instituição de “planos de carreira”.

O regime jurídico único significava que os servidores da administração direta, autárquica e fundacional de determinado ente público deveriam ser regidos pelas mesmas normas básicas. Exemplificativamente, no caso da União, todos os servidores públicos deveriam ser regidos pela Lei n. 8.112/1990, não sendo possível que a União editasse uma lei, por exemplo, dizendo que os servidores das autarquias seriam regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, e não pela Lei 8.112/1990.

Nesse sentido, o fim do regime jurídico único significa a liberdade da União de criar outros regimes jurídicos que existiriam em concomitância com o regime estatutário atualmente existente (Lei n. 8.112/1990). É o que a União fez ao editar a Lei n. 9.962/2000, criando o regime de “emprego público” e prevendo que “leis específicas disporão sobre a criação dos empregos de que trata esta Lei no âmbito da Administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo, bem como sobre a transformação dos atuais cargos em empregos”. Essa lei, que estava com a sua eficácia suspensa em virtude da cautelar deferida pelo STF em 2007, agora volta a produzir potenciais efeitos.

A fim de evitar problemas ainda maiores do que os que já virão, o Supremo Tribunal Federal, ressalvou que a declaração de constitucionalidade da modificação do caput do art. 39 da Constituição Federal pela EC n. 19/1998 teria efeitos prospectivos (ex nunc, ou seja, do julgamento em diante) e que seria “vedada a transmudação de regime dos atuais servidores, como medida de evitar tumultos administrativos e previdenciários”.

É difícil mensurar todas as consequências decorrentes da decisão do STF, mas, a seguir, alguns impactos e conjecturas serão apresentados, principalmente em relação aos servidores públicos federais:

1) O STF tentou resguardar a situação dos atuais servidores. Assim, quem é hoje regido pela Lei 8.112/1990, não poderá ser migrado para algum outro regime jurídico que a União resolver adotar (como aquele da Lei 9.962/2000, por exemplo).

2) O fim do regime jurídico único não significa que somente existirão dois regimes: o estatutário (Lei 8.112/1990) e o “celetista” (Lei n. 9.962/2000). A rigor, podem ser criados inúmeros regimes, cada qual com uma “finalidade” ou destinação. Na impede que se institua, por exemplo, em um mesmo órgão público, um “emprego público” regido pela Lei n. 9.962/2000, um cargo público regido por uma nova lei (diversa da Lei 8.112/1990) e um cargo público regido pela Lei 8.112/1990. Convém lembrar que se, no final dos 1990 e início dos anos 2000 o paradigma de precarização era submeter os servidores públicos às normas da Consolidação das Leis do Trabalho, atualmente o paradigma é “pejotização”, “uberização”, “contrato intermitente” e por aí vai. O limite dessa possível “babilônia neoliberal” será dado pela “criatividade” do legislador e do administrador e, é claro, pela luta dos atuais servidores contra esse aprofundamento da precarização.

3) O regime de “emprego público” (atualmente disciplinado pela quase desconhecida Lei n. 9.962/2000) não garante estabilidade. A atual redação do caput do art. 41 da Constituição Federal, também dada pela Emenda Constitucional n. 19/1998, prevê que “são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público”. A redação anterior à EC n. 19/1998 era mais abrangente e não restringia a estabilidade apenas para os “cargos de provimento efetivo”. E esse “detalhe” faz toda a diferença. A Lei n. 9.962/2000 é cuidadosa ao não usar a nomenclatura “cargo público”, mas sim “emprego público”. A ideia foi justamente fugir da regra da estabilidade. A Lei n. 9.962/2000 até restringe a possibilidade de rescisão unilateral, pela Administração Pública, do contrato de trabalho por prazo indeterminado (art. 3º), mas é uma garantia menos sólida do que a da estabilidade prevista no art. 41 da CRFB/88 e mais vulnerável (prevista meramente em lei, e não na Constituição Federal). A mitigação da estabilidade abre portas para perseguições e assédios, desfigurando completamente o modelo moralizante pensado pelo constituinte de 1988, sendo um ponto muito preocupante.

4) Mesmo que estejam sujeitos a outros regimes jurídicos, os novos servidores ou empregados públicos ainda continuarão se submetendo à exigência do concurso público. Isso não foi alterado, pois a regra do concurso público não comporta exceções e abrange também o emprego público (art. 37, II, CRFB/88). Porém é notório o desestímulo que a instituição de um regime jurídico piorado e sem estabilidade traz para os estudantes/concurseiros.

5) Existe uma interpretação de que as “atividades exclusivas de Estado” somente poderiam ser exercidas por cargos de provimento efetivo. É possível extrair esse entendimento do art. 247 da Constituição Federal. Mas, mesmo que essa interpretação prevaleça, fato é que, com o fim do regime jurídico único, nada impede que esses cargos sejam regidos por um estatuto legal próprio, diferente da Lei n. 8.112/1990. Por outro lado, é importante consignar que o Governo FHC vetou dispositivo da Lei n. 9.962/2000 que excluía, do regime de emprego público, os “servidores que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolvam atividades exclusivas de Estado, nos termos das leis mencionadas no art. 247 da Constituição Federal”. Um dos argumentos do governo da época foi no sentido de que esse dispositivo violava o “interesse público”, uma vez que “tiraria da Administração Pública a necessária flexibilização para o seu bom funcionamento, uma das principais justificativas para a criação do regime de emprego público”. Ou seja, mesmo as “atividades exclusivas de Estado” correm riscos.

6) A instituição de um regime jurídico diferente daquele previsto na Lei 8.112/1990 para os novos empregados/servidores tem um potencial muito danoso. Trabalhadores com remunerações, direitos e garantias muito distintos podem passar a exercer, lado a lado, atribuições similares. Isso tem o potencial de gerar uma enorme briga interna e falta de coesão entre os trabalhadores, prejudicando profundamente a união necessária para barrar retrocessos e conquistar reajustes e direitos. Esse novo cenário também pode gerar problemas significativos na própria organização sindical, que pode se fragmentar.

Os pontos acima enumerados são fruto de uma “primeira impressão”. Porém o tema é novo e impactante, sendo certo que novos problemas tendem a ser constatados à medida que esse novo cenário for assimilado.

Por fim, uma breve crítica. Lendo análises feitas por especialistas em processo legislativo, fica claro que o rito constitucional para a aprovação de uma emenda constitucional não foi respeitado em relação à alteração do caput do art. 39 da CRFB/88. A composição do STF de 2007 teve esse mesmo entendimento. Porém, para azar do serviço público, dos trabalhadores e dos concurseiros, o mérito da ADI n. 2.135 somente foi julgado em 2024.


Charles da Costa Bruxel
Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados. Ex-Coordenador da Fenajufe e Ex-Presidente do Sindissétima/CE.

Equipe Fenajufe