Por Márcio Pochmann* – 29/03/05
Embora sempre presente na retórica de políticos, especialistas e do povo em geral, a dívida social, estimada em R$ 7,2 bilhões, não recebe a mesma atenção que a dívida financeira pública. Esta, apesar de 10 vezes menor, conta no governo com equipe gestora, metas e cronogramas claros.
O célebre comentário de Tancredo Neves pronunciado ainda na primeira metade da década de 1980 sobre o fato de o Brasil não poder mais pagar a dívida pública com a fome do seu povo permanece – ainda hoje – atual. Naquela oportunidade, logo no início da transição democrática, diversos especialistas e instituições financeiras buscavam se colocar de acordo a respeito da metodologia de definição do tamanho da dívida pública, enquanto parcela do movimento social reivindicava a auditoria e moratória das dívidas públicas interna e externa.
Uma vez alcançado o consenso sobre o tamanho da dívida pública entre as autoridades governamentais, iniciou-se o longo calvário de reorganização do setor público para poder atender ao recorrente e crescente conjunto de interesses dos credores financeiros do Estado brasileiro. Com Sarney, por exemplo, foram dados os primeiro passos, por intermédio do fim da Conta Movimento no Banco do Brasil e da criação da Secretaria do Tesoura Nacional (STN) subordinada no Ministério da Fazenda.
Em síntese, houve aperto da torneira que viabilizava recurso público rápido e fácil ao sistema financeiro com o fim da Conta Movimento, enquanto a STN assumiu maior centralidade na coordenação da receita e do gasto do setor público. Dessa forma, a reorganização das finanças governamentais voltou-se ao atendimento da dívida pública.
Após marchas e contra-marchas, como a moratória técnica da dívida externa, em 1987, e o aprisionamento dos recursos aplicados no sistema financeiro, em 1990 com o Plano Collor, a musculatura do setor público terminou sendo novamente revigorada com o intuito de melhor atender aos credores da dívida pública. Já nos preparativos do Plano Real, em 1994, a equipe econômica em alta, introduziu a contenção sistemática do gasto social, por conta da desvinculação de parte das receitas direcionadas ao financiamento da saúde, assistência, previdência, educação e trabalho, bem como prolongou a criação do Orçamento da Seguridade Social definida pela Constituição de 1988.
Assim, os titulares da dívida pública passaram a ter mais e melhores garantias materiais de que não faltariam recursos públicos. Ademais, houve ainda a continuidade da drenagem das finanças públicas para os credores da dívida por meio da privatização do setor produtivo estatal, da elevação da carga tributária sobre a população mais pobre, da terceirização e do arrocho da remuneração dos funcionários e, ainda, da legislação que estabeleceu um freio ao maior gasto orçamentário, como a Lei Camata na despesa de pessoal e a Lei de Responsabilidade Fiscal na despesa sem cobertura fiscal.
Por fim, um novo impulso foi dado em relação à segurança de recursos públicos necessários ao atendimento das famílias ricas que colocam parte crescente de sua riqueza na ciranda financeira. A implementação das metas de inflação e de superávit fiscal indica inquestionavelmente o quanto a política macroeconômica encontra-se comprometida com a sustentação do ciclo da financeirização da riqueza no Brasil.
Em outras palavras, os governos constituíram coordenação na área econômica, com equipe gestora dos esforços de todas as áreas para atender às exigências do endividamento público, apresentando, inclusive, metas e cronogramas claros para não deixarem dúvidas a respeito da predisposição final de atender fielmente os compromissos financeiros firmados.
Em contrapartida, a dívida social, embora quase sempre presente na retórica de políticos, especialistas e do povo em geral, deixou de apresentar a mesma performance quando comparada com a dívida financeira pública. Ainda hoje não há metodologia oficial reconhecida para o dimensionamento da dívida social no Brasil.
Ao mesmo tempo em que se desconhece o seu tamanho, parece desconsiderar-se a necessária reorganização da gestão da área social, que tem permanecido sem instituição que lhe dê centralidade – em paralelo com a dívida pública que se expressa pela Secretaria do Tesouro Nacional. Sem explicitar coordenação e equipe voltada à matricialidade e à intersetorialidade das ações, a área social deixa de apresentar metas oficiais e cronogramas globais, com compromissos explicitados de recursos públicos e privados suficientes para saldar a dívida social existente.
Sobre isso, aliás, nem se fala, por exemplo, de uma Lei de Responsabilidade Social. Uma legislação desse tipo poderia, por exemplo, estimular o comprometimento de gestores públicos e de toda a sociedade com uma possível meta oficial de inclusão social.
No quinto livro da série Atlas da Exclusão Social publicada pela editora Cortez (Agenda não liberal da inclusão social no Brasil) localiza-se uma metodologia de dimensionamento da atual dívida social no Brasil, ao mesmo tempo em que apresenta um cronograma com metas de ações socioeconômicas fundamentais. De acordo com as estimativas de parte dos pesquisadores que organizaram o livro, o Brasil registrou, em 2004, uma dívida social de 7,2 trilhões de reais, ou seja, quase 10 vezes a atual dívida financeira pública.
Enquanto permanecer em moratória – não declarada – o pagamento da dívida social, tende a ficar em segundo tanto plano o necessário redesenho do atual padrão de gestão de políticas públicas como a relocalização de recursos adicionais para a área social. Não causa surpresa, por conta disso, que o Brasil corre o sério risco de chegar, em 2020, com situação socioeconômica não superior a verificada nos dias de hoje.
* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.