Por Flávia Piovesan* – 18/04/05
Enquanto na África o presidente Lula pedia “perdão” pela escravidão em discurso na ilha de Gorée (Senegal), no Brasil o jogador argentino Desábato era detido sob acusação de ofensas racistas contra o atacante afro-descendente Grafite, em jogo de futebol, na última semana.
Estes fatos suscitam a polêmica a respeito do combate ao racismo no Brasil. Como enfrentar a discriminação racial? Qual tem sido a eficácia do combate ao racismo na experiência brasileira?
Estas questões assumem maior relevância considerando duas peculiaridades do Brasil: o 2º país do mundo com maior contingente populacional afro-descendente (perdendo apenas para a Nigéria) e último país do mundo ocidental a abolir a escravidão. Se se considerar os poucos mais de 500 anos do “(re)descobrimento do Brasil”, a população afro-descendente viveu 388 deles em regime escravocrata. Como acentua Abdias do Nascimento, “o povo afro-brasileiro é o povo cujos direitos humanos foram mais brutalmente agredidos ao longo da história do país: o povo que durante séculos não mereceu nem o reconhecimento de sua própria condição humana”.
Desde 1968 o Brasil é parte da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, hoje ratificada por 170 Estados. Esta Convenção define a discriminação racial como toda distinção ou exclusão baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha por resultado anular ou restringir o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Isto é, a discriminação racial ocorre quando se elege o critério da raça para impedir o exercício de direitos e liberdades, negando-se ao outro a plena condição de sujeito de direito.
Para a Convenção, qualquer doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa. Exige, assim, dos Estados-partes a adoção de medidas internas que condenem e proíbam a discriminação racial.
Na história brasileira, apenas com a Constituição Federal de 1988, um século após o fim da escravidão, é que ineditamente a prática do racismo passou a ser crime inafiançável, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Posteriormente, a Lei 7716/89 veio a tipificar os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, sendo alterada pela Lei 9.459/97, para também contemplar a injúria baseada em discriminação racial (por exemplo, as humilhações, os insultos e os xingamentos), bem como a punição de atos resultantes de preconceito de etnia, religião ou procedência nacional.
Contudo, até 2001, havia tão-somente 12 condenações criminais por racismo no país. Este reduzido universo de condenações reflete um verdadeiro sistema de “filtragens sucessivas”, realizadas pelos aparatos da segurança e da justiça, que, por obstáculos de ordem notadamente ideológica e cultural, tem impedido o efetivo combate do racismo no Brasil. O primeiro desafio atém-se à denúncia do racismo, já que, por vezes, a vítima se cala, a fim de evitar reiteradamente o peso da dor e da humilhação, sendo que há ainda um desconhecimento da população em geral acerca do crime de racismo e de como proceder quando da sua ocorrência. O segundo desafio refere-se ao aparato de segurança, posto que as delegacias carecem de maior sensibilidade para responder à gravidade do racismo, que na prática é ainda considerado um crime de menor relevância.
Daí vem o primeiro recorte, na medida em que a maioria significativa das ocorrências de racismo é arquivada. O segundo recorte vem com o aparato da justiça, quando o Ministério Público acaba também por restringir a propositura das ações penais cabíveis, descaracterizando a crime do racismo, sendo complementado com o terceiro recorte por parte do Poder Judiciário, tendo em vista serem ainda ínfimas as condenações por racismo. Estes recortes sucessivos podem, em parte, ser explicados pela crença no mito da democracia racial, bem caracterizado por sentença proferida no processo 256/93 (8a Vara Criminal de São Paulo), que, em 1994, ao julgar totalmente improcedente ação envolvendo a prática de racismo, argumentou que “no Brasil quase não temos exatamente racismo. Os de pele mais escura são ídolos inclusive dos mais claros no esporte e na música, sendo que mulheres popularmente chamadas de “mulatas” parece que têm orgulho dessa situação e exibem-se com grande sucesso em muitos locais da moda e da fama”.
Por isso, a urgência em fomentar a capacitação jurídica voltada ao combate à discriminação racial, a fim de que as diversas instituições e atores sociais (delegacias, promotorias, advocacia, magistratura, dentre outros), possam, com maior eficácia, inclusive mediante a criação de serviços jurídicos especializados, responder à gravidade do racismo, que não pode contar com a complacência do Estado. Nesse sentido, o próprio Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação Racial ressaltou sua preocupação com a reduzida efetividade da legislação brasileira de combate ao racismo, recomendando programas de treinamento para administradores da justiça e agentes aplicadores da lei.
A erradicação da discriminação racial é medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais da população afro-descendente no país. A exclusão social e a discriminação racial surgem como termos interligados, a compor um ciclo vicioso, em que a exclusão implica discriminação e a discriminação implica exclusão, em um contexto de desigualdade estrutural em que os afrodescendentes são 64% dos pobres e 69% dos indigentes (dados do Ipea).
O caso do jogador Grafite revela imenso impacto pedagógico no combate ao racismo e na exigência de respeito à diversidade racial. Contudo, a diligente resposta dada pelos agentes públicos, que aplicaram devidamente a lei, não compõe a regra, mas a exceção – explicada tanto pelo perfil da vítima, como pelo espetáculo televisivo. Com o seu forte significado simbólico, o caso Grafite é capaz de traduzir, sobretudo, a urgência de enfrentar o legado discriminatório, que tem negado à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e liberdades mais fundamentais.
* Flávia Piovesan é professora doutora da PUC-SP nas disciplinas de Direito Constitucional e Direitos Humanos, professora de Direitos Humanos do Programa de Pós Graduação da PUC-SP e do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento na Universidade Pablo Olavide (Espanha), visiting fellow do Programa de Direitos Humanos da Harvard Law School (1995 e 2000), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do Estado de São Paulo.