fbpx

Barreiras tecnológicas para servidores públicos com deficiência: a permanência que adoece

Barreiras tecnológicas para servidores públicos com deficiência: a permanência que adoece

Por Alisson Azevedo*

O objetivo desta carta de trabalho é promover a aproximação entre os estudos e a luta dos trabalhadores em geral, dos trabalhadores da saúde e dos trabalhadores com deficiência. Foi para esse mister - como se escrevia nas missivas de outrora, que nos reunimos: uma pesquisadora e trabalhadora da saúde (sem deficiência) e um servidor público, pesquisador e militante do movimento de pessoas com deficiência (cego). Recorremos ao gênero das cartas, pois julgamos que neste momento, de acelerada retirada de direitos, uma carta tem maior eficácia política do que teria um artigo acadêmico.

A opção pela carta também é uma homenagem a tantos outros trabalhadores missivistas, dentre eles Paul Hunt, sociólogo inglês com deficiência que, em vinte de setembro de 1972, teve publicada no jornal The Guardian uma curta carta na qual denunciava a opressão sofrida por ele e por seus pares numa instituição para deficientes. Por sua forma breve e seu conteúdo claro, vale a pena reproduzir a carta de Hunt:

Senhor Editor, as pessoas com lesões físicas severas encontram-se isoladas em instituições sem as menores condições, onde suas ideias são ignoradas, onde estão sujeitas ao autoritarismo e, comumente, a cruéis regimes. Proponho a formação de um grupo de pessoas que leve ao Parlamento as ideias das pessoas que, hoje, vivem nessas instituições e das que potencialmente irão substituí-las. Atenciosamente, Paul Hunt. (3)

Esse aprisionamento das pessoas com deficiência, denunciado por Hunt e tantos outros no seu tempo, tem hoje uma situação similar, que é o embarreiramento de muitos trabalhadores com deficiência por ferramentas tecnológicas que deveriam garantir-lhes emancipação e autonomia. É desse impedimento e do consequente adoecimento de trabalhadores com deficiência no setor público brasileiro, que vamos tratar nesta carta.

O recente apagão mundial das três mais importantes redes sociais da Internet - Facebook, Instagram e WhatsApp, embora não tenha durado mais que algumas parcas horas, gerou inúmeros prejuízos financeiros, além de ter resgatado uma sensação de impotência universal que o ambiente virtual parecia desconhecer desde o bug do milênio - que afinal não houve. (4) Esse breve apagão mundial das redes é aqui evocado para dar a medida de outro apagão, de bem menor proporção e, também por isso, invisível. Trata-se do apagão vivenciado cotidianamente por servidores públicos com deficiência, em razão das chamadas barreiras tecnológicas.

Antes disso, porém, é preciso retomar o conceito de deficiência segundo o modelo biopsicossocial contido na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que no Brasil tem equivalência de emenda constitucional, e adotada pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015). Para esse modelo, pessoa com deficiência é “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (LBI, artigo 2°). Construído ao longo de décadas pelo movimento internacional de pessoas com deficiência (5), esse conceito desloca a deficiência de uma abordagem exclusivamente biomédica que privilegiava a lesão, para outra, biopsicossocial.

A deficiência, portanto, é a interação entre impedimentos de longo prazo e barreiras do ambiente. É somente a partir desse conceito, considerado um “conceito em evolução” (CDPD), que a deficiência é retirada do lugar da lesão e da doença e colocada num lugar de soma de impedimentos de longo prazo, mais barreiras do ambiente, na sociedade, o que torna possível mensurar o impacto opressor dessas barreiras sobre as pessoas com deficiência. Aliás, ciente da novidade trazida por essa verdadeira virada de mesa conceitual no campo da deficiência (6), o legislador inseriu, no artigo terceiro da Lei Brasileira de Inclusão, um glossário do qual vale a pena reproduzir alguns termos. Lei brasileira de inclusão (Lei 13.146/2015) "Art. 3° - [glossário] IV- barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros”.

No caso da deficiência, existia uma ausência na língua portuguesa para descrever as formas de desigualdade sofridas no mundo do trabalho, nas escolas e nas relações interpessoais. De modo mais amplo, para as barreiras que representam a opressão pelo corpo, já dispúnhamos em nossa língua de categorias, tais como racismo, no caso da discriminação pela cor da pele ou etnia; sexismo, no caso da discriminação por sexo; homofobia, no caso da discriminação pela orientação sexual. Já a ausência discursiva para nomear as decorrências perversas do corpo normatividade em que alguns são considerados inferiores, incompletos ou passíveis de reparação/reabilitação, pode ser considerada um indicador de invisibilidade social das pessoas com deficiência.

Diante dessa constatação tem sido adotada no Brasil nomenclatura semelhante a que se tem usado em Portugal, ou seja, que a palavra ableism seja traduzida como capacitismo, dando maior visibilidade social e política ao contexto de opressão contra as pessoas com deficiência. O termo busca expressar as diversas formas depreconceito, discriminação e exclusão, em especial para com as pessoas com deficiência. O conceito que o termo abarca implica em julgamento moral, onde a deficiência é o elemento considerado inferior em comparação ao padrão de normalidade que definirá se a pessoa é plenamente humana, considerando como critério único a funcionalidade das estruturas corporais, em que se avalia o que a pessoa é ou não capaz de fazer. Ou seja, define a existência humana a partir de um corpo normatividade, na qual o corpo com algum tipo de impedimento, que pode ser de ordem intelectual, física, sensorial é considerado incapaz. O capacitismo, como instrumento de opressão, busca invisibilizar as lutas da pessoa com deficiência, tratando-a como impossibilitada de lutar pelos próprios direitos. Nesta concepção se considera uma determinada “hierarquia” de corpos para definir quando um corpo ou um comportamento tem maior ou menor valor na sociedade capacitista. (7)

Em relação à entrada das pessoas com deficiência no mundo do trabalho o percentual é tão insuficiente, e em contrário é tão disseminada a cultura de que elas não estão aptas para trabalhar, que as barreiras laborais sequer foram devidamente catalogadas e por isso sequer foram nomeadas. Uma das expressões dessa discriminação se dá pela existência de barreiras tecnológicas que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias das quais somos todos dependentes no atual período técnico-científico informacional - ou simplesmente período tecnológico - que atravessamos pelo menos desde 1945. (8)

Mal comparando, o recente apagão das redes, referido no início desta carta de trabalho, trouxe a vivência de barreiras de acesso impostas por três ou quatro parcas horas, o suficiente para causar muitos transtornos. Ainda mais em tempos de afastamento social devido à pandemia, a internet, os programas de comunicação e as mídias sociais passaram a ser essenciais. Imagine-se o que provocam essas barreiras, continuamente impostas às pessoas com deficiência, principalmente no ambiente laboral.

Se uma pessoa com deficiência visual quiser usar o Facebook ou o Instagram nas horas vagas e enfrentar, para tanto, barreiras tecnológicas, poderá recorrer a outras opções de lazer disponíveis e acessíveis (9). Mas se essa mesma pessoa precisar acessar um sistema, ler um documento ou preencher um formulário em seu ambiente de trabalho, presencial ou remoto, e for impedida pela falta de acessibilidade digital, terá, para além das barreiras tecnológicas e em decorrência delas, barreiras laborais que vão impedir o exercício de suas atividades e, no limite, irão bloquear seu trabalho, sua satisfação profissional, sua sensação de produtividade, sua ascensão na carreira etc. Enfim, vão causar-lhe opressão social, subjetiva e objetiva, em razão da deficiência - notadamente devido às barreiras do ambiente que impedem ou restringem sua participação social. Isso que chamamos de "barreiras laborais”, aliás, não consta do glossário contido no artigo 3° da Lei Brasileira de Inclusão.

Como sabemos, nosso país tem um arcabouço legal que se observado já nos colocaria em outro estágio como sociedade inclusiva. Senão vejamos: a Constituição Federal de 1988 trouxe garantias aos trabalhadores e servidores públicos com deficiência. No serviço público, foi garantida reserva de vagas para o segmento (CF/88, artigo 37, inciso VIII); a Lei brasileira de inclusão (LBI) em seu Art. 34 dispõe que “A pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades como as demais pessoas”. Pelo parágrafo 1° do mesmo artigo, “As pessoas jurídicas de direito público, privado ou de qualquer natureza são obrigadas a garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos" aos trabalhadores com deficiência.

Porém, tais garantias jurídicas, somadas ao surgimento das tecnologias assistivas, não têm significado a eliminação de barreiras de acesso e, principalmente, de permanência das pessoas com deficiência no serviço público, o que pode causar maior adoecimento. Em recente publicação, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) listou alguns pontos- chave para a inclusão de pessoas com deficiência na resposta à pandemia de COVID-19, dentre eles: assegurar o direito ao trabalho agora e sempre, além de ser preciso mudar a narrativa, pois para haver inclusão é fundamental incluir pessoas com deficiência como co-criadoras das respostas à COVID-19, como defensoras e usuárias, e não como vítimas. O diálogo social e a participação são fundamentos dos movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência e pelos direitos trabalhistas.

As transformações no mundo do trabalho já mostravam profundas contradições, mas ainda precisarão ser dissecadas no mundo pós-pandemia e denunciadas em suas estruturas promotoras de desigualdades e injustiça social. Em relação à condição do servidor público, vê-se a dilapidação de direitos pela anunciada reforma administrativa, comparada pelo atual ministro da economia a uma granada colocada no bolso do servidor público. Programa-se, de viva voz, demolição da carreira, congelamento de salários, redução de carga horária, suspensão de concursos e avaliações de desempenho baseadas em produtividade subjetiva. A saúde do servidor fora da pauta. Que diremos da saúde daquele servidor com deficiência que tem como suposto privilégio a sua permanência no serviço público, mas em que condições e a que preço?

Christophe Dejours, pesquisador francês, focou sua investigação no sofrimento ligado ao trabalho, mas não na direção das “doenças mentais”, como faz a psicopatologia do trabalho, e sim nas estratégias elaboradas pelos trabalhadores para enfrentar mentalmente a situação do trabalho. Iniciava-se assim, no começo dos anos 80, sob a influência da psicanálise, a psicodinâmica do trabalho, cujo objeto de estudo era o sofrimento e as defesas contra a doença. O grande mérito de Dejours, ao considerar a significação e o sentido do sofrimento como dimensões essenciais no entendimento da relação saúde-trabalho, foi colocar-se à escuta do trabalhador para compreender o que lhe ocorria. E chega a declarar que “A saúde é quando ter esperança é permitido”.

Assim, do ponto de vista psicanalítico, o sofrimento se configura como uma reação, uma manifestação da insistência em viver em um ambiente que, na maioria das vezes, não lhe é favorável.

Julgamos que as condições de trabalho das pessoas com deficiência no serviço público precisam ser debatidas pelo conjunto dos trabalhadores em meio à discussão, de resto muito insuficiente, sobre a reforma administrativa. Esta carta tem o objetivo de puxar essa conversa, com base no modelo biopsicossocial da deficiência, nos instrumentos jurídicos de proteção desse segmento, e nos pressupostos que norteiam o debate sobre o adoecimento dos trabalhadores. Aliás, e ainda é preciso dizê-lo, os trabalhadores com deficiência, seja no setor público, seja no setor privado, são antes de tudo trabalhadores. Logo, se a luta geral por direitos dos trabalhadores deve abarcar também as pessoas com deficiência, sua luta por direitos específicos deve importar a todos os trabalhadores. Afinal, a permanência de pessoas com deficiência no serviço público, se marcada pelo contínuo embarreiramento por tecnologias que não disponham de acessibilidade, será sempre sinônimo de adoecimento.

*Alisson Azevedo é técnico judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás, diretor do Sinjufego, diretor de relações públicas da Associação dos Deficientes Visuais do Estado de Goiás, membro do Conselho Estadual de Saúde de Goiás (CES-GO) e mestrando em geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás.

---

Notas

(1) Alisson Azevedo é técnico judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás, diretor do Sinjufego, diretor de relações públicas da Associação dos Deficientes Visuais do Estado de Goiás, membro do Conselho Estadual de Saúde de Goiás (CES-GO) e mestrando em geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás.

(2) Sônia Gertneré do Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência. Mestre e doutoranda em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz. Psicóloga. Pedagoga. Especialista em Saúde Mental e Psicanálise (UERJ) e em Gestão de Organizações de Ciência e Tecnologia em Saúde (ENSP). Professora no Curso de Especialização em Direitos humanos, acessibilidade e inclusão da pessoa com deficiência - DIHS/ENSP. Pesquisadora da Fiocruz.

(3) A partir da carta de Hunt criou-se o movimento inglês de pessoas com deficiência que deu origem à Upias (Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação), primeira organização do segmento de que se tem notícia. Ver Debora Diniz, "O que é Deficiência", 10. Ed. São Paulo: Brasiliense; 2012. 79 p.

(4) O bug do milênio "Foi um medo coletivo de que, na virada de 1999 para 2000, os computadores da época não entendessem a mudança e causassem uma pane geral em sistemas e serviços". Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-bug-do-milenio/

(5) Para conhecer os meandros dessa construção, ver Dhanda, Amita. Construindo um novo léxico dos direitos humanos: Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: www.surjournal.org

(6) Ver Diniz, 2012.

(7)  Gertner, SRCB. Avanços e recuos no reconhecimento social da pessoa com deficiência. In: Seminário Internacional Gêneros e Interdisciplinaridades: a práxis da interseccionalidade na contemporaneidade. Neuza de Farias Araújo (org), Vitor João Ramos Alves, Maria José Magalhães e Thiago Sebastiano de Melo. 1a ed.- Brasília/DF,     Editora            Otimismo,       2020.   P.84.    Disponível em:https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1mGQA6whe207h3eESpItxWA2h3fGq xvB

(8)  Ver Milton Santos, Espaço e método, Nobel, 1988.

(9)  O portal de entretenimento Cegos Brasil, por exemplo, oferece conteúdo gratuito e de qualidade para pessoas cegas e com baixa visão. (Ver http://cegosbrasil.net/)

 

Artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam, necessariamente, as ideias ou opiniões da Fenajufe.

Pin It

afju fja fndc