Cabe, preliminarmente, tecer algumas considerações conceituais importantes para situar a crítica à centralidade contida na proposta de Política Nacional de Gestão de Pessoas, ora em consulta pública, colocada nos resultados e na meritocracia.
Importância do trabalho na construção da identidade da pessoa e sua implicação na saúde mental do indivíduo.
O trabalho na sociedade atual é fator determinante para a construção da identidade de cada ser humano. Eu sou o que faço e para que eu exista é necessário que haja o reconhecimento pelo outro do meu trabalho, do valor do trabalho e do esforço de produção do trabalho. O professor e doutor em medicina, pai da psicodinâmica do trabalho, Chistophe Dejours, nos ensina que o significado do trabalho é mais que o meio de sobrevivência para o ser humano; é, sobretudo, um “espaço de realização”. Apesar do salário compatível e valorizado ter importância fundamental, ele, por si só, não garante a satisfação nem o comprometimento e muito menos a saúde mental do trabalhador e da trabalhadora. Como espaço de realização, o efeito da organização do trabalho e das condições e qualidade de vida no trabalho são determinantes sobre a saúde mental: pode transformar ou pode destruir. O reconhecimento é fator essencial nesse processo. Também é importante clarear o conceito de trabalho. Aqui é fundamental entender, pelo menos se o objetivo for garantir o comprometimento de servidores e a garantia de sua saúde mental e física, de que o trabalho não pode ser avaliado pelo resultado e sim pelo processo.
Dito isso, passemos a crítica ao modelo embutido na proposta apresentada à consulta pública. Ao introduzir conceitos de modelos de gestão produtivista retira-se o espaço de reconhecimento e realização do servidor e servidora. O processo de trabalho até chegar no resultado é mais importante que o resultado em si e isso está desvalorizado, senão, extinto quando se constrói metas focadas no resultado produtivista no centro da gestão de pessoas.
Também, não menos importante trata-se de conceituar o servidor ou funcionário público como colaborador. Esse conceito largamente usado no setor privado a partir de modelos de gestão neoliberais traz em seu âmago a negação de um contrato de trabalho entre as partes, com direitos e obrigações definidas para levar o trabalhador a um terreno de insegurança e o empregador a uma confortável situação de descomprometimento com aquele ou aquela trabalhador(a). Essa ideia de relação é pensada num modelo volátil e altamente rotativo, do capitalismo líquido, leve. Além de não beneficiar as relações de trabalho ainda, no caso do serviço público e da própria proposta em discussão, vai na contramão das diretrizes expostas na Seção III, que dispõe das condições de trabalho e da valorização dos servidores em seu inciso VII, entre outros.
Política de Gestão de Pessoas para democratizar as relações de trabalho e garantir saúde e qualidade de vida no trabalho.
A introdução da cultura orientada a resultados e implantação da gestão por competências aliada à meritocracia e a uma política de controle meramente estatístico de produtividade, introdução da implementação do PJe sem nenhum estudo de impacto e plano de prevenção de danos, a falta de compatibilidade com outras ferramentas presentes em modelos diversos de processos eletrônicos em uso e com indicadores mais bem avaliados pelos servidores do que o modelo PJe do CNJ, opção por formas de flexibilização e terceirização do quadro de pessoal, são escolhas incompatíveis com a garantia de qualidade de vida para servidores e magistrados. Respostas ao enfrentamento dessas questões são centrais na formulação de uma Política de Gestão de Pessoas efetiva e que garanta a consecução dos objetivos institucionais de promover justiça, valorização de seus quadros e garantia de ambiente saudável de trabalho.
O Poder Judiciário não deve se alinhar – assim como nenhum órgão do serviço público – à política de gestão privada, travestida de otimização, eficiência, modernização e controle. O crescimento exponencial do adoecimento dos servidores e juízes é proporcional à aplicação de uma política de cumprimento de metas abusivas e sem parâmetros objetivos e realistas da capacidade de alcançá-las. A aplicação dessa receita produtivista tem como resultado o comprometimento da integridade física e mental dos servidores e servidoras. Ainda, a garantia de uma boa política de gestão de pessoas passa pelo planejamento e execução de contrapartidas institucionais de condições de trabalho, política de prevenção à saúde do trabalhador, qualificação e capacitação adequada, carga de trabalho equânime com a jornada, uma jornada compatível com o esforço (fisco, mental) empreendido no processo de trabalho e um dimensionamento realista e objetivo do quadro e não o que vem ocorrendo em vários órgãos qual seja a extinção de setores, com conseqüente intensificação do trabalho de forma subjetiva, apenas baseado em uma crença de que o PJe e/ou outros modelos de processo eletrônico diminuem automaticamente a necessidade de servidores e servidoras, regramento do teletrabalho que além de responsabilizar o servidor(a) pelas suas condições de trabalho e gastos com seu trabalho ainda exigem o cumprimento de metas mais abusivas ainda, capacitação insuficiente e falta de escuta e participação efetiva de servidores e magistrados na construção do planejamento estratégico e suas repercussões.
A decisão pela implantação de uma política de gestão de pessoas que reconhece, potencializa e desenvolve habilidades precisa estar comprometida com a valorização, a qualidade de vida e do ambiente de trabalho do servidor(a) e não se coaduna com modelo baseado na competitividade produtivista através de “estímulos financeiros”, que se tornam combustível para o assédio moral, o adoecimento pela sobrecarga de trabalho e instrumento de transformação de medição da qualidade do serviço prestado apenas pela quantidade. Aqui, de antemão, fica registrado a contrariedade ao estímulo individual, seja por meio de FCs, CJS, seja por meio de gratificação de desempenho ou similar, bem como avaliações apenas individuais, sem levar em conta as condições de trabalho, a organização do trabalho, o gestor, o quadro de servidores e outros quesitos. Todos esses conceitos estão embutidos no conceito de meritocracia tradicional, exposto como um dos princípios da política de gestão de pessoas ora em consulta pública. Especificamente quanto ao modelo de avaliação cabe registrar a necessidade de se avançar em modelos como a avaliação em 360º, incentivando a horizontalidade do processo avaliativo, além dos aspectos já elencados.
A mudança desejada na gestão de pessoas não passa pela inserção de mecanismos produtivistas de viés privado na instituição pública, ela ocorrerá com o advento da democratização da gestão do trabalho, da instalação de uma política de gestão em rede de fato horizontal, que planeje junto com as equipes de trabalho, que construa coletivamente as soluções necessárias. Valorizar e democratizar é preciso. Sem isto, atingir os objetivos e os macrodesafios propostos pelo CNJ, ao final do processo, significará apenas padronização sem inteligência e intensificação do trabalho, fazendo de servidores e magistrados meros operadores e não pensadores, ficando as decisões judiciais para os níveis superiores de hierarquia.
Defendemos assento das entidades representativas de servidores (sindicatos e federações) nos conselhos superiores, no Comitê Gestor do Planejamento Estratégico e PJe e demais comitês e comissões que tratem de temas de relevância; maior transparência e participação efetiva (e não só burocrática) dos servidores na construção das diretrizes estratégicas e metas. O foco na quantidade de decisões e número de processos analisados – através de medidores como o processômetro – não contribui necessariamente com uma justiça melhor. A celeridade precisa estar afinada com o objetivo de garantir decisões de qualidade. Nesse quesito, cabe ressaltar a concordância com a constituição de Comitês Gestores Nacional e Locais, desde que garantida sua formatação paritária com participação de gestores, servidores e magistrados. Essa é uma possibilidade de implementação de ferramenta democratizante das relações de trabalho e um poderoso espaço de escuta para dar conseqüência ao inciso IV, do artigo 8º, capítulo V.
A Constituição de ferramentas de combate ao abuso de poder e assédio moral no Poder Judiciário devem fazer parte das diretrizes de uma política de gestão de pessoas. Essa questão passa tanto pela composição paritária dos comitês Nacional e Locais, quanto pela instalação de mesa de negociação permanente com o intuito de discutir um Plano de Carreira dos Servidores do Poder Judiciário, como pelo acesso à participação de representação dos servidores e servidoras através de sua entidade representativa sindical nas comissões de interesse, como por exemplo na Comissão Permanente de Eficiência Operacional e Gestão de Pessoas do CNJ e na Comissão de implementação do PJe e no próprio CNJ, quanto pela implementação da negociação coletiva e política salarial permanente. Essas são algumas ações para assegurar as mudanças necessárias na gestão de pessoas e garantir a democratização das relações de trabalho.
Em relação à valorização das condições de trabalho e da saúde física e mental dos servidores, já com indicadores ruins, tem com o processo de implementação do PJe, um agravamento no quadro de incidência de sintomas, como mostra a Pesquisa Geral de Saúde feita pelo Sintrajufe/RS em 2011 e 2012, com 3.744 servidores respondentes (60% da base de servidores no RS) dos quatro ramos do Judiciário Federal (JT, JF, JE e JM). O resultado demonstra que quanto maior o tempo de exposição ao processo no meio eletrônico (e-PROC, no caso da pesquisa), pioram os indicadores de saúde, seja físico ou mental, como mostram as tabelas comparativas entre as Justiças:
Sintomas oftalmológicos
Sempre /quase
sempre |
JF
(total)
2011 |
TRF
(total)
2011 |
JT
(total)
2011 |
JE
(total)
2011 |
JM
(total)
2011 |
Virtual
JF
2011** |
JEFs
2008* |
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Dor e Ardência |
39,3% |
31,3% |
25,3% |
19,0% |
36,0% |
50,4% |
52,7% |
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Ressecamento |
37,2% |
30,7% |
24,0% |
18,7% |
24,0% |
47,9% |
53,1% |
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Cansaço |
47,6% |
37,8% |
30,8% |
24,7% |
20,0% |
59,7% |
63,5% |
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Embaralhada e
desfocada |
28,7% |
24,2% |
20,4% |
14,9% |
24,0% |
35,7% |
45,3% |
* Servidores trabalhando com processo eletrônico desde 2004
** Servidores que responderam trabalhar preponderantemente com virtual
Sintomas osteomusculares
Dor sempre /quase sempre |
Geral
2002 |
JF
2011 |
TRF
2011 |
JT
2011 |
JE
2011 |
JM
2011 |
Virtual
JF
2011** |
JEFs
2008* |
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Pescoço |
24,2% |
31,7% |
32,4% |
26,6% |
23,0% |
16,6
% |
34,4% |
50,2% |
|
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|
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|
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Costas |
33,2% |
36,8% |
33,1% |
35,0% |
28,6% |
25,0
% |
38,6% |
57,6% |
Ombros |
27,8% |
31,6% |
27,6% |
28,2% |
22,3% |
24,5
% |
34,8% |
47,9% |
|
|
|
|
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|
Braços |
18,6% |
21,3% |
16,0% |
17,2% |
7,1% |
16,6
% |
26,6% |
32,6% |
|
|
|
|
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|
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|
|
Pernas |
14,6% |
14,8% |
14,7% |
15,1% |
9,9% |
16,0
% |
15,8% |
18,0% |
* Servidores trabalhando com processo eletrônico desde 2004
** Servidores que responderam trabalhar preponderantemente com virtual
Indicativo de distúrbios psíquicos
SRQ 20 Geral = 31,8%
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JF
2011 |
JF Judiciári a |
TR F 2011 |
TRF Judiciária |
JT
2011 |
JE
2011 |
JM
2011 |
Virtu al JF 2011 |
JEFs
2008 |
Of. Jus JF 2011 |
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|
|
SR
Q
20 |
35,8
% |
38,2% |
30,8
% |
31,9% |
31,
0% |
26,7
% |
24,0
% |
38,1
% |
37,1
% |
48,6
% |
Fonte: Pesquisa Geral de Saúde dos Servidores – Sintrajufe/RS 2011/2012 – Gestão Mais Sintrajufe (2010/2013)
Isso, de forma alguma, deve ser lido como uma negação à introdução de tecnologias disponíveis para agilizar, facilitar e racionalizar atribuições e processos de trabalho e sim como uma crítica ao processo de implementação das mudanças produtivas no PJU, em especial o de implementação do PJe, desumanizado, verticalmente hierarquizado e sem conhecimento ou preocupação de seu impacto na saúde, na qualidade e na capacidade de aumento de produtividade, que precisa ser subordinada ao humanamente possível, dentro de parâmetros que mediem a necessidade de resposta do PJU à sociedade ao humanamente realizável com saúde e qualidade de vida e ética no trabalho.
A Gestão de pessoas, especificamente, e o PJu como um todo devem atentar para os graves acontecimentos recentes envolvendo suicídios nos prédios do Judiciário, caso do TRT da 2º Região. Esse é um alerta que não gostaríamos de fazer, mas que infelizmente não temos como deixar de relacionar a reestruturação produtivista em curso no PJU com esses fatos. Em que pese os servidores do judiciário não estarem fora das estatísticas de ideações suicidas presentes na sociedade como um todo, cabe ressaltar que o fato desses suicídios terem ocorrido nos prédios onde trabalhavam é uma mensagem que não pode deixar de ser ouvida. Chistophe Dejours e Florence Bègue, em sua obra “Suicídio e Trabalho”, que analisa como as formas organizacionais do trabalho podem suscitar o gesto suicida e como esse ato, tema de difícil discussão no ambiente de trabalho e na sociedade e muitas vezes silenciado, pode servir como expressão de sofrimento no cenário do trabalho. A visibilidade de suicídios e tentativas de suicídios no local de trabalho começou a ser debatida nos países ocidentais a partir dos anos 1990, muito focado no setor privado, mas o setor público bancário, nessa mesma época a partir dos Planos de Demissão Voluntária, política de privatizações e introdução de políticas neoliberais estão dentro dessas estatísticas e de estudo da Universidade de Brasília (UnB) que apontam que, 181 bancários deram cabo à própria vida no Brasil entre 1996 e 2005. No judiciário, outros suicídios já ocorreram, mas ao que consta, os fatos ocorrerem nos locais de trabalho configuram fatos inéditos na história do PJU e precisam de apuração e a necessária e responsável intervenção do CNJ e STF nesse quadro, a fim de não transformarmos os quadros de servidores e magistrados em vítimas potenciais do trabalho que deveria ser o espaço de realização pessoal e de promoção de direitos e avanço da cidadania e justiça social.