A garantia de gratuidade do tratamento pela contaminação do novo coronavírus prevista na Lei 13.979/2020

O Brasil está passando por uma das mais severas crises sanitárias devido à pandemia do novo coronavírus, que pode desencadear a doença COVID-19. No dia 03 de fevereiro de 2020, o Ministro da Saúde, por meio da Portaria nº 188, declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e, até 15 de agosto, dados oficiais apontavam que cerca de 3,3 milhões de pessoas foram contaminadas pelo novo coronavírus no Brasil, sendo que mais de 107.300 delas vieram a óbito, infelizmente. No entanto, apesar de estarrecedores, esses dados estão subestimados em razão do baixo número de testagem para COVID-19 e da sub-notificação de contaminados e mortos. Há estudos que dizem que esses números podem ser, na realidade, quatro vezes mais.

Em 7/2/2020 foi publicada a Lei nº 13.979 , de 6/2/2020, chamada Lei de Enfrentamento ao coronavírus. Foi o marco inicial da regulamentação de procedimentos a cargo dos governos federal, estadual e municipal para combater a proliferação do novo coronavírus entre a população; prevê medidas de monitoração e rastreamento das incidências de contaminação; providências para diagnosticar e tratar da doença, previsão de restrição de circulação de pessoas em âmbito local e por rodovias, portos e aeroportos, de entrada e saída e locomoção interestadual e intermunicipal. Essa norma também conceituou os termos “isolamento” e “quarentena”; flexibilizou as regras de importação de materiais, medicamentos, equipamentos e insumos na área de saúde, sem registro na ANVISA desde que necessários ao combate à pandemia; suspendeu de prazos processuais e administrativos, entre outras medidas.

A proporção em que aumentava a incidência de contaminação entre as pessoas, essa lei foi sendo alterada pelas Medidas Provisórias nº 926, 927, 928, 951 e pelas Leis 14.006, 14.019, 14.023, e 14.035 até agora.

Mas, neste artigo vou ater-me à questão da gratuidade do tratamento às pessoas afetadas pelo novo coronavírus fazendo um contraponto com a decisão da Agência Nacional de Saúde – ANS, que determinou que os planos de saúde devem cobrir as despesas com a realização dos testes para diagnóstico da contaminação do beneficiário pelo novo coronavirus, conforme Resolução Normativa n. 460, de 13/8/2020, que está disponível no site: www.ans.gov.br.

Conforme notícia da própria ANS, disponível na sua página na internet, essa resolução incorporou, de forma extraordinária ao Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, no âmbito da saúde suplementar, os testes sorológicos para detectar a presença de anticorpos produzidos pelo organismo após exposição ao novo coronavírus. Esses testes serão autorizados, em suma, para aqueles pacientes que tem sintomas de Síndrome Gripal (SG) e Síndrome Respiratória Aguda, Grave (SRAG), a partir do oitavo dias de sintomas e crianças e adolescentes com quadro suspeito de Síndrome Multissistêmica Inflamatória pós-Infecção pelo SARS-COV, desde que não se enquadrem em algumas das hipóteses como ter já testado positivo para SARS-COV-2 no exame RT-PCR, tenha testado positivo em outro exame sorológico ou negativo, se for criança ou adolescente, entre outras . Essas exclusões, a meu ver, visam evitar a repetição desnecessária de exames, pois já houve resultado positivo da contaminação por testes anteriores e ou, decorrido o prazo de oito dias, o paciente apresenta os sintomas de SG, SRAG ou SARS-COV-2.

Os testes sorológicos que foram incluídos no rol de procedimentos de que trata a Resolução Normativa ANS nº 460/2020, são aqueles que objetivam detectar a presença de anticorpos produzidos pelo organismo após exposição ao vírus e podem ser realizados por meio de várias técnicas de imunofluorescência, imunocromatografia, enzimaimunoensaio e quimioluminescência. Já os testes que utilizam a metodologia RT-PCR, que possuem a finalidade de identificar a presença de material genético do virus , estão incorporados ao rol de procedimentos da ANS desde 13 de março de 2020.

Voltando à Lei 13.979, de 2020, vejam o que diz o art. 3º:

_Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
(…)
III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais, c) coletas de amostras clinicas, d) vacinação e outras medidas profiláticas ou e) tratamentos médicos específicos
§ 2º Ficam assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo:
(…)
II – o direito de receberem tratamento gratuito;
(…)_

Considerando ser uma questão de saúde pública, pandêmica, a previsão de compulsoriedade presente no inciso III e a garantia de gratuidade constante no § 2º alcançam desde a consultas inicial quando há suspeita de contaminação pelo novo coronavírus, exames laboratoriais para confirmar se houve a contaminação, o tratamento ambulatorial e hospitalar, incluindo a internação em UTI, vacinas e até medicamentos, tudo em caráter de emergência.

Importa destacar ainda têm prioridade para fazer os testes e receber o tratamento médico-hospitalar quem exerce uma das atividades profissionais essenciais ao controle de doenças, relacionados no art. 3º-J, dentre eles médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, maqueiros, agentes comunitários de saúde, agentes de fiscalização e também os policiais, que são responsáveis pela manutenção da ordem pública diretamente envolvidos nas atividades relacionadas com a prevenção e o combate à disseminação do novo coronavírus, ou seja, no combate a aglomerações, que são totalmente inoportunas enquanto perdurar a declaração de emergência em saúde pública feita pelo Ministério da Saúde.

Portanto a garantia de gratuidade do tratamento de saúde às pessoas afetadas pelo novo coronavírus está explicitamente assegurada no inciso II, do § 2º do art. 3º da Lei 13.979/2020. E essa garantia está em consonância com o art. 196 da Constituição Federal que estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Já o art. 199 da Constituição Federal prevê a faculdade de a iniciativa privada prestar serviços de assistência à saúde, denominada de “assistência de saúde suplementar”. Suplementar porque a regra é a utilização do Sistema Único de Saúde – SUS para o tratamento das enfermidades, de forma gratuita. E essa assistência suplementar ocorre pela oferta de planos de saúde ou por atendimentos custeados pelo próprio interessado, que são os “atendimentos particular” em consultórios médicos, laboratórios e hospitais, para quem tem condições financeiras de pagar pelos procedimentos.
Porém, a todos, independentemente da condição financeira ou origem, é garantida a prevenção de doenças e o seu o tratamento Sistema Único de Saúde, em observância aos princípios da universalidade e igualdade previstos no art. 196/CF.

Quanto aos planos de saúde, existem vários tipos de planos de saúde. Há a modalidade “auto-gestão”, que são aqueles geridos pelo ente federativo ou grandes empregadores em benefício dos seus servidores ou empregados (normalmente na forma de Instituto), e aqueles ofertados pelas operadoras de planos privado de assistência à saúde. O custeio desses planos pode ser a preço pré ou pós-estabelecido, abrangendo a segmentação da assistência (ambulatorial, hospitalar com obstetrícia, hospitalar sem obstetrícia, odontológica e referência), conforme a Lei nº 9.656/98 . Óbvio que cada usuário titular sabe qual é o seu tipo de plano de saúde pois é ele quem paga, diretamente (boleto) ou por meio de desconto em seu contracheque.

Pois bem, o que se vê dessa Resolução ANS nº 460 é uma sorrateira transferência dos custos de testagem para COVID-19 aos planos de saúde que, por sua vez repassarão para os usuários, imediatamente ou na repactuação dos contratos. É uma forma de excluir aqueles que possuem planos de saúde da garantia da gratuidade prevista no art. 3º da Lei nº 13.979. Isso porque na Resolução não houve previsão de cooperação, que poderia dar-se na forma de convênio entre o governo federal e operadoras de planos de saúde, que lhes repassaria o valor correspondente ao custo dos testes realizados.

Isso é lamentável porque os usuários de planos de saúde, além de sofrerem com a angústia de uma contaminação em uma pessoa da família, arcarão, indiretamente, com o ônus ineficiência dos governos federal, estadual e municipal em tomar medidas efetivas para minimizar as condições de disseminação desse vírus entre a população. É muito alto o número de contaminados e de vítimas fatais pela COVID-19 no Brasil, em relação a outros países que foram mais ágeis, rígidos e eficientes nas medidas preventivas, incluindo o isolamento e a quarentena e uso obrigatório de máscaras e produção de Equipamentos de Proteção Individual – EPI.

Entendo que essa Resolução Normativa nº 460, da ANS padece de vício de ilegalidade porque é frontalmente contrária ao que estabelece § 2º do art. 3º da Lei 13.979/2020, que assegura às pessoas que foram afetadas pelas medidas previstas na lei (entre elas o isolamento e a quarentena), o direito de receberem tratamento gratuito, ainda mais levando-se em consideração que o inciso III prevê a determinação compulsória de: exames médicos; testes laboratoriais; coletas de amostras clinicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos.

Sendo assim, a todos que passaram ou vierem a passar pelo doloroso processo de contaminação pelo novo coronavírus é recomendável guardarem os resultados dos testes e os comprovantes das despesas cobradas pelo seu plano de saúde, com base na Resolução ANS 460, relacionadas com a realização de testes para diagnóstico da contaminação pelo novo coronavírus, a fim de subsidiar eventual demanda judicial com vistas ao ressarcimento dos valores que foram gastos pelo titular do plano, se o seu montante for suficiente para compensar os custos da ação judicial.

Quanto as despesas com o tratamento contra a COVID-19, pelo mesmo fundamento da gratuidade e da compulsoriedade previstas no art. 3º da Lei nº 13.979, estando comprovada a necessidade de o paciente lançar mão do seu plano de saúde para internação em razão da inexistência de vaga em leitos hospitalares destinados ao SUS, é factível uma ação de ressarcimento dos valores gastos, haja vista a circunstância que o levou a não ser atendido pelo Sistema Único de Saúde e ter que utilizar seu plano de saúde.

Todavia, por ser uma matéria muito nova no meio jurídico, outras interpretações podem surgir, pois a hermenêutica jurídica abriga várias formas de interpretar um texto legal e o debate de ideias em Direito é um caminho salutar para se encontrar soluções que levem ao apaziguamento da sociedade.

*Zeneide Andrade de Alencar é advogada, administradora e servidora aposentada do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul. Integrante do Coletivo Base Unida.

 

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