Documentário sobre arquitetura hostil do Rio mostra a realidade dos moradores de rua na cidade

Foi pensando em denunciar isso que o cineasta Márcio Coutinho teve a ideia de fazer o documentário “Rio, Cidade Hostil”, que começou as primeiras filmagens agora em meados de março. “O olhar para essas causas é importante e necessário. E como o cinema é a minha paixão, quero poder fazer disso a minha forma de denúncia e crítica social. Levar as pessoas a refletirem. Há anos, a arquitetura hostil está aí presente no Rio e em várias outras cidades do país, mas parece que a gente não se dá conta. Pedras pontiagudas embaixo de viadutos, bancos inclinados para que ninguém possa dormir nas praças ou nos bancos do ponto de ônibus, pinos metálicos na porta de alguns estabelecimentos. Por que isso, pra que isso? É assim que se resolve o problema das pessoas em situação de rua? Vamos discutir, entender e denunciar. Até porque, em janeiro agora, foi promulgada a Lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a chamada arquitetura hostil em espaços públicos”, afirma Marcos, diretor do doc.

Aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, a lei chegou a ser vetada pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelo Congresso e, agora, a lei foi então promulgada.

Depoimentos

Na quarta-feira, 22/03, umas das filmagens do documentário aconteceu no Instituto LAR, parceiro do Sisejufe, que trabalha para resgatar a dignidade de pessoas em situação de rua. Fomos acompanhar e registrar os depoimentos tão tocantes dessas pessoas que vivem em situação de rua e são afetadas ainda mais pela exclusão e crueldade que a arquitetura hostil impõe a cada uma delas.

Em suas falas, uma constante: o sentimento de se sentirem excluídos da sociedade.

Francisco de Oliveira Azevedo vive em situação de rua há pouco mais de sete meses, quando saiu de Seropédica, na casa da família: “Meu primeiro dia nas ruas foi muito difícil. Eu só chorava, chorava e tentava pensar em um novo caminho. A gente não vai pra rua porque quer. Eu, por exemplo, fui porque cansei de sofrer preconceito por ser homossexual. Minha família não me aceitava. Então, tomei essa decisão, mas é claro que é muito, muito difícil. E ao se deparar com esses espaços que ainda são pensados para nos afastar, nos excluir, é doloroso demais.

Não sabia do termo “arquitetura hostil”, mas já sentia na pele os efeitos dessa prática. Isso tem que parar. É feio de se olhar e é muito, muito agressivo com as pessoas. Sim, somos pessoas em situação de rua, mas também fazemos parte da sociedade. Ou pelo menos, queremos fazer parte dela. Quero ser olhado, visto e valorizado. Fingir que a gente não existe e querer nos varrer de determinados lugares não acaba com o problema. Precisamos de política pública que nos atenda, queremos capacitação profissional, sonhamos em voltar ao mercado de trabalho, sim. Por isso, gostei de saber da existência do documentário e quis dar meu depoimeto, também”, disse o rapaz.

Documentário sobre arquitetura hostil do Rio mostra a realidade dos moradores de rua na cidade, SISEJUFE

Francisco deu um depoimento forte e cheio de lucidez sobre o tema

Micaella Augusto, mulher trans, frequenta o Instituto LAR há poucas semanas. Natural de Minas Gerais, desde que chegou ao Rio, encontra-se, também, em situação de rua. “Não está sendo uma experiência fácil… É difícil. À noite, é ainda mais difícil. Por isso, a gente anda entre amigos e procura se proteger do jeito que dá. Encarar as ruas não é moleza, não. Gostei de participar e dar o meu relato. A sociedade precisa olhar e nos enxergar.”

O maranhanse Marcelo Vilarinho está em situação de rua, mas dorme em abrigos da prefeitura. Ele diz que não chegou a passar nenhuma noite nas ruas, mesmo assim, compartilha com os companheiros a dor dessa exclusão que sente na pele: “Na rua, cada realidade é uma realidade. Tem gente que está lá há muitos anos e não quer sair por vários motivos: problemas com a família, agressões em casa, drogas, seja o que for. E tem a grande maioria que só quer um braço estendido, um olhar, uma ajuda para sair dessa situação e conseguir se inserir, de novo, na sociedade, com trabalho formal e tudo certinho. A pandemia piorou ainda mais esse problema que já era enorme. Fechar os olhos para ele é um absurdo. Não há política pública que nos atenda. O Governo Federal, as prefeituras, as empresas, todo mundo que pode fazer algo precisa fazer alguma coisa, sim. Nos excluir, nos marginalizar, fingir que não existimos não vai resolver nada”, afirmou Marcelo.

Júlio Muniz, psicólogo do Instituto LAR, falou sobre o trabalho que desenvolve na instituição e afirmou que o que precisa é a sociedade ter um olhar de respeito e empatia às pessoas em situação de rua: “Eu mesmo, em casa e com meus colegas de faculdade, quando comento que trabalho atendendo pessoas em situação de rua, muita gente não acredita, não gosta, tem um olhar de surpresa e decepção. Por que isso, minha gente? Mais empatia, né mesmo? Eu gosto muito do meu trabalho. E me emociono em poder ajudar, contribuir para termos um olhar mais solidário e humano com todas as pessoas”.

O Instituto LAR

Criado em 2016, o Instituto LAR é uma organização sem fins lucrativos, que atua na cidade do Rio de Janeiro, e apoia o processo de reinserção social de pessoas em situação de rua. A sigla LAR significa Levante, Ande e Recomece, indicando que cada cidadão tem o potencial de se reerguer, retomar o controle de sua vida e iniciar uma nova caminhada em uma trajetória digna. Em 2022, ganhou o selo que certifica ser uma das 10 melhores ongs de pequeno porte do país.

O Sisejufe é parceiro do Instituto LAR. Damos orientação jurídica e acesso à justiça às pessoas em situação de rua que são assistidas pelo Institulo LAR. Acreditamos e apoiamos essa instituição séria e comprometida com o resgate e a valorização das pessoas em situação de rua. Em março de 2019, custeamos a reforma da sede do Instituto LAR, que fica no Centro do Rio.

Documentário sobre arquitetura hostil do Rio mostra a realidade dos moradores de rua na cidade, SISEJUFE

Equipe do Instituto LAR junto ao diretor e à produtora do doc

A equipe do doc

O cineasta Márcio Coutinho faz cinema independente há sete anos anos. Apaixonado pelas temáticas sociais, já fez outros três documentários (Hora Morta; Vozes da Rua; Eu Moro em Qualquer Lugar), entre curta e longa metragens. Começou a filmar agora em março seu quarto documnetário, “Rio, Cidade Hostil”, e em paralelo a isso está envolvido com a divulgação de um outro documentário, “Eu Moro em Qualquer Lugar” (2022), que fala sobre a realidade das mulheres em situação de rua, suas especificidades, dores e medos.

Rachel Silva, produtora do filme, fala com paixão sobre o fazer cinema: “Eu e ele temos outros trabalhos. A gente se vira para poder viabilizar essa paixão que é fazer cinema independente. Não temos patrocínio nenhum . Temos parceiros que nos ajudam cedendo locação e tal, mas verba, grana, patrocínio, não temos nenhum. É uma luta, mas a gente ama e acredita muito nessa linguagem e no poder que ele tem de levar a mensagem, a crítica social às pessoas. Ah, quer saber, vou morrer fazendo cinema. É isso que acredito, amo e quero fazer a vida toda”, conta emocionada.

Documentário sobre arquitetura hostil do Rio mostra a realidade dos moradores de rua na cidade, SISEJUFEh

Márcio (diretor) e Rachel (produtora do doc)

Especial em abril

O Sisejufe acompanhou um dia de trabalho do padre Júlio Lancelotti com a população em situação de rua no entorno da Paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Moca, em São Paulo. Como já mencionado acima, o projeto realizado pelo religioso ganhou tanto reconhecimento que a lei que proíbe a arquitetura hostil, recém promulgada, leva o seu nome. A reportagem especial com o padre Lancelotti e pessoas assistidas pelo projeto será publicada no jornal Contraponto de abril.

Jornalista da Fenajufe