Por Márcio Pochmann* – 03/10/05
Somente 5 mil clãs de famílias chegam a se apropriar de mais de 40% de toda a riqueza nacional, embora o país registre mais de 51 milhões de famílias. Como explicar tal situação que remonta à estabilidade secular no padrão excludente de repartição da renda e riqueza no Brasil?
A desigualdade na repartição da renda, riqueza e poder é uma marca inalienável do Brasil. De acordo com o “Atlas de exclusão social – Os ricos no Brasil” (Cortez, 2004), somente 5 mil clãs de famílias chegam a se apropriar de mais de 40% de toda a riqueza nacional, embora o país registre mais de 51 milhões de famílias. Se considerar somente a parcela da população que se concentra no décil mais rico, verifica-se que 75% de toda a riqueza contabilizada terminam sendo por ela absorvida. Em outras palavras, restam 25% da riqueza nacional a ser apropriada por 90% da população brasileira.
Concentração começa pelo poder
Esse descalabro em relação à concentração sem limites da riqueza no país não é algo recente. Pelo contrário, isso parece ser algo consolidado desde sempre no país, embora desde 1980, com o abandono do projeto de industrialização nacional, tem avançado no país o ciclo da financeirização da riqueza, com retorno ao modelo primário-exportador de matérias primas e produtos agropecuários. Da mesma forma que os ciclos econômicos anteriores, o padrão distributivo segue inalterado, a não ser pelo aprofundamento da desigualdade de renda e riqueza. Entre 1980 e 2000, por exemplo, quando o crescimento econômico foi pífio, praticamente dobrou em termos absolutos e relativos a quantidade de famílias ricas. Também se tornou geograficamente mais concentrada ainda a presença dos ricos no Brasil. Atualmente, somente quatro cidades respondem por quase oito a cada dez famílias ricas no Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte).
Como explicar tal situação que remonta à estabilidade secular no padrão excludente de repartição da renda e riqueza no Brasil? A resposta talvez deva ser encontrada na estabilidade do poder em mãos do conservadorismo das elites no país. Assim como a renda e a riqueza, o poder no Brasil encontra-se muito concentrado. Daí porque o país jamais ter vivido alguma experiência revolucionária. As insurreições existiram, mas foram, em geral, massacradas pelas forças do conservadorismo. Mesmo a revolução burguesa ocorreu desfigurada, sem que fosse inofensiva ao padrão excludente de repartição da riqueza e renda.
Ausência histórica de democracia
As reformas civilizatórias do capitalismo contemporâneo também deixaram de acontecer no Brasil. Assim, sem revoluções e sem reformas consideráveis, o padrão distributivo não seria modificado. A ausência de democracia consolidada parece ser a grande razão do conservadorismo e da concentração do poder. Dos mais de cinco séculos de existência, o Brasil não tem 50 anos de regime democrático.
É claro que não se pode chamar de democracia o que ocorria durante a fase imperial do século 19 e a República Velha (1889 a 1930). Tratava-se de um regime censitário, capaz de disponibilizar o voto tão somente para a população masculina que tinha posses e renda, compreendendo cerca de 5% da população. Deve ser lembrado ainda que as eleições não eram secretas.
Somente a partir da década de 1930 é que o Brasil avançou par consolidar o voto secreto e universal, mesmo que deixando de fora a população analfabeta. Mas a partir daí tiveram o Estado Novo (1937-45) e o regime militar (1964-85), justamente quando se definiu o novo pacto de poder favorável à industrialização (década de 1930) e quando o país registrou as maiores taxas de crescimento da renda (milagre econômico entre 1968 e 1973).
Quando o autoritarismo predominou, os ricos foram beneficiados, mantendo inalterado o padrão distributivo excludente no país. Os apelos populares e progressistas do povo em favor da melhor repartição dos frutos do crescimento econômico ficaram de fora do núcleo de poder. Durante os períodos democráticos, mantiveram-se altas as demandas reprimidas pelas fases autoritárias, especialmente num ambiente de enorme heterogeneidade social e geográfica. As convergências necessárias para o desenvolvimento de um projeto revolucionário ou mesmo de natureza reformista ficaram subsumidas na administração das emergências e no congraçamento de articulações políticas entre distintos extratos de classe sociais, muitas vezes necessárias à governabilidade.
Políticas públicas a meio caminho
Por conta disso, o encaminhamento das questões referentes à alteração do padrão distributivo ficou em segundo plano. Também o bloqueio que emerge na priorização das ações de governo a serem realizadas termina direcionando a tarefas de curto prazo, incapazes de alterar a estrutura de concentração dos agregados de renda e riqueza no país. Da mesma forma, a concentração do poder econômico e político impõe obstáculos profundos na gestão o país. O reacionarismo das elites que concentram o poder tem inviabilizado a concretização de reformas num ambiente democrático.
Na ausência de revolução e reformas, geralmente obstadas pelo conservadorismo, as políticas públicas ficaram pelo meio do caminho. Os gastos públicos nas áreas sociais já são significativos, ainda que não suficientes para repararem a herança do padrão excludente de repartição da renda nacional. Mas seus resultados demonstram a importância para evitar um maior aprofundamento da desigualdade de renda. No entanto, apresentam-se insuficientes até o momento para modificar a estrutura secular da má repartição da riqueza.
Assim, a composição fundiária segue muito concentrada. A estrutura tributária permanece regressiva, com a população pobre pagando mais impostos e os ricos quase que incólumes, enquanto a estrutura social se mantém distante das possibilidades governamentais de garantir a universalidade e qualidade necessária dos bens, serviços e equipamentos sociais básicos para toda a população.
O que o Banco Mundial não vê
Como se pode observar, há razões de ordem estruturais para obstaculizar a alteração considerável da distribuição da renda e riqueza no Brasil. Mesmo assim, o Banco Mundial parece desconhecê-las, ou mesmo desprezá-las quando se propôs, recentemente, a analisar as causas da desigualdade nacional, tendo identificado o déficit educacional como medida a ser enfrentada fundamentalmente. Ora, a educação é apenas parte de um processo muito mais amplo, sendo necessária ampliação dos investimentos, porém não suficiente para modificar a desigualdade de renda e riqueza.
Para aqueles que acreditam nas hipóteses da teoria do capital humano bastaria apenas e tão somente analisar a situação do desemprego entre os brasileiros ricos e pobres, para saber que nas condições atuais da economia nacional, quanto mais os pobres estudam maior tem sido a possibilidade do desemprego, uma vez que crescem as colocações de mão-de-obra por meio das relações sociais e pessoais num país de enorme excedente de força de trabalho.
A universalização da educação, em todos os níveis no Brasil, deve ser uma meta a ser alcançada mais rápida possível, sem que isso represente uma panacéia em termos de combate à desigualdade social. Suas causas são mais profundas e requerem mudanças estruturais, que somente a organização popular poderá levar a sua realização.
* Márcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp.