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Há um fino golpe no ar

Por Elio Gaspari, para O Globo e Folha de S. Paulo – 14/07/05

É golpista a articulação de uma renúncia de Lula à reeleição. Embrulhada numa Sacola da Daslu (o Bolsa-Família dos tucanos), ela funcionaria assim:

1 - Lula vai à televisão e anuncia que não disputará a reeleição.

2 - O Congresso aprova uma emenda constitucional que acaba com a reeleição e aumenta de quatro para cinco anos o mandato dos próximos presidentes da República.

3 - Desmoralizado, o companheiro vai para casa, o PT definha e o PSDB volta ao Planalto.

A idéia é golpista porque coloca a Constituição a reboque de um arranjo. As leis da terra dizem que o mandato de Lula vai até o dia 1º de janeiro de 2007, quando será substituído na Presidência pelo cidadão escolhido em 2006. Essas mesmas leis garantem ao companheiro o direito de disputar a reeleição.

O arranjo embute a cassação dos cidadãos encarregados de eleger o presidente da República. Cassa-lhes o direito de julgar Lula. Se ele quiser disputar a reeleição, duas coisas podem acontecer: ganha ou perde. Nos dois resultados, seu destino será decidido pela patuléia soberana que o pôs no Planalto em 2002.

Os hierarcas de Brasília não têm mandato para fazer um cambalacho que tira dos eleitores o direito de decidir a questão. Tem gente disposta a mostrar que continua confiando no presidente, assim como tem gente que venderia a cueca para ter o gosto de mandá-lo de volta para São Bernardo.

O interesse pela renúncia de Lula reflete dois tipos de receios. A desistência seria conveniente para preservá-lo. Uma espécie de trégua no andar de cima. Esse é o receio bem-intencionado. Maligno é o medo de que, uma vez candidato, Lula se reeleja. Afinal, se esse medo não existisse, a desistência seria desnecessária, por irrelevante.

Medo de voto é coisa perigosa. Não custa lembrar uma brilhante construção do jornalista Carlos Lacerda, em 1950: "O sr. Getúlio Vargas [...] não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito".

Até aí, tudo bem, mas Lacerda continua: "Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar". As desgraças da política nacional na segunda metade do século passado vinham das duas primeiras negativas: "não deve ser candidato" e "não deve ser eleito".

Era o medo da volta de Vargas, que virou medo da chegada de João Goulart e, mais tarde, tornou-se o medo (absolutamente despropositado) da vitória de Lula. Trata-se de um golpezinho esperto porque seria ratificado pela vítima. Como na mágica de 1961, quando João Goulart conformou-se com o parlamentarismo de mentirinha que salvou a face de uma revolta de generais derrotada nas ruas. É também um golpe bem-educado, pois assenta-se exclusivamente num conchavo parlamentar. Não rosna a força das armas nem a da rua.

Em 1840, com o Golpe da Maioridade, os mandarins do Império colocaram um garoto de 14 anos no trono do Brasil. Na República, sucederam-se os Golpes da Menoridade, todos destinados a substituir a vontade de um povo considerado incapaz. A idéia é sempre a mesma: em nome de uma conciliação destinada a aplacar as tensões da Guerra Fria (no século 20) ou dos mercados financeiros (no 21) aceita-se qualquer acordo, desde que a escumalha fique de fora.

Se Lula achar que deve disputar a reeleição, não se pode tirar do povo brasileiro o direito de decidir onde o companheiro vai morar.

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