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Sobre Cachorros e Democracia

Por Cláudio Klein, servidore do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP)

Este artigo é de inteira responsabilidade do autor, não sendo esta necessariamente a opinião da diretoria da Fenajufe

Lord é o meu cachorro. É um  vira-lata de porte grande com cara de Labrador. Ele sabe sentar, deitar, dar a pata, fechar a porta, pegar o jornal, fazer necessidades no jornal e andar sozinho no canteiro central da avenida. É um cachorro adestrado, basta um comando e ele prontamente me atende. Quando saio para passear com Lord, solto ele no canteiro central da avenida e me alegro vendo-o trotando altivo, rabo pra cima e um sorriso esnobe, principalmente quando passamos por outros cães desengonçados, como o Torresmo, o Rottweiler do vizinho, que todo dia arrasta seu dono pela coleira: bárbaro! Lord anda direitinho ao meu lado e pára e senta ao meu comando. Às vezes nos deparamos com algum vira-lata de rua. Cachorros sem modos que atravessam a rua fora da faixa. Atrapalham o transito. Outro dia um deles ainda olhou com desdém para Lord, que permanecia sentado ao meu lado. Em breve a carrocinha o recolheria. Mas aquele olhar ficou a semana toda me incomodando.

Mais tarde, lendo Michel Foucault, em seu famoso livro Vigiar e Punir, acabei me surpreendendo com as semelhanças do meu mundo e o mundo que criei para Lord, meu cachorro.

Foucault ao estudar as reformas penais do início do século XIX, observou que os métodos violentos e corporais de punição, como o suplício público, onde os castigos corporais exemplares estavam no centro das tecnologias punitivas, passam a dar lugar a novas técnicas mais sofisticadas, onde o centro deixa de ser o corpo, e passa a ser a mente, através de técnicas de controle do tempo, do silencio forçado, da disciplina coletiva, das micropenalidades corporais constantes e prolongado dentro de uma prisão.

O mundo estava mudando e já não havia mais espaço para o poder soberano e inquestionável do nobre ou do senhor feudal. Surge uma nova tecnologia para punir, com controle minucioso das operações do corpo, não mais baseada no castigo físico, mas na disciplina das prisões. Trata-se de métodos sofisticados de adestramento do criminoso, com controle de horários e atividade, sob uma vigilância constante, para que ele volte seu comportamento para dentro das normas, dentro da curva.

Foucault acaba por concluir que as práticas disciplinares própria da prisão têm um alcance que vai muito alem dos muros da instituição, ao constituir tecnologias de poder que, partindo das práticas prisionais, espalham-se por toda a sociedade. Essas técnicas de “adestramento”, de controle do tempo, de disciplina organizativa são adotadas com muito êxito nas fábricas, nas empresas, nos nossos tribunais e até no interior das famílias e das escolas, que se utilizando de tais técnicas, acabam desempenhando um papel central na manutenção das relações de poder na sociedade moderna. Nas palavras do estudioso: “há uma rede carcerária sutil envolvendo todo o corpo da sociedade moderna”. Aprendemos desde cedo sentar, deitar e dar a pata. 

Uma vez adestrados, e só a partir de então, foi possível soltar Lord no canteiro central da avenida. Da mesma forma, os que dominam podem lançar mão de sistemas ainda mais sofisticados de controle, como a democracia. Como meu cachorro Lord, somos livres para andar soltos no canteiro central da avenida, desde que sempre vigiados e obedecendo as normas. Aos que não se adaptam, aos que andam fora da curva, que ‘defecam’ fora do jornal resta-lhes as focinheiras ou a carrocinha.

Passei a olhar diferente para o Lord, que sem saber, é mais prisioneiro que Torresmo, apesar de andar feliz pelo canteiro central da avenida. Não tive pena de Lord, eu sou adestrador, mas pensei em nós, que vivemos abanando o rabo para nossa liberdade democrática. Democracia para os adestrados.

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