Por Gilberto Maringoni*, direto de Caracas – 25/01/06
O Fórum Social Mundial de 2006 começou em La Paz, Bolívia, no domingo, a alguns milhares de quilômetros da sede oficial, Caracas. A posse de Evo Morales, não apenas por ser realizada, coincidentemente, dois dias antes da marcha de abertura, mas pelo significado político, encarna à perfeição a idéia daqueles que vêem o Fórum como um processo político contínuo e não como um evento delimitado em poucos dias.
O afiado discurso inaugural, de uma hora e meia, do novo mandatário boliviano pontuou o variado ideário que impulsiona as gigantescas assembléias do movimento por outro mundo possível. Evo fez um rechaço às discriminações de qualquer ordem, denunciou a privatização de recursos naturais, a supremacia do capital financeiro e do imperialismo e clamou por uma nova ordem, mais justa, baseada em Estados democráticos.
Aliás, não apenas com Evo Morales, mas com a chamada onda esquerdista que varre a América Latina, as idéias centrais do Fórum saem do terreno das intenções e ganham materialidade. Há, em alguns países, um processo de “cotidianização” de pequenos e grandes desejos coletivos. Isso se dá não apenas pelas ações de alguns governos que enfrentam a ortodoxia ultraliberal, mas especialmente pelos povos a repudiar as políticas de ajustes regressivos levadas a cabo nas últimas duas décadas.
Ventos favoráveis
Possivelmente a América Latina não viva um período tão favorável aos movimentos populares desde a conjuntura aberta em 1952, com a revolução boliviana. Ela passou pela eleição do nacionalista Jacobo Árbenz, na Guatemala em 1953, pela derrubada do ditador Marcos Pérez Jiménez, na Venezuela em 1958, pelo avanço de mobilizações populares no Brasil e que teve seu ponto alto na revolução cubana, em 1959. Essa conjuntura se fecha com o início do ciclo de ditaduras militares, cujo marco definidor acontece no Brasil, em 1964. Desde então, nunca tantos povos se mobilizaram por uma mudança de rumos.
Embora auspiciosos, esses novos ventos têm uma fragilidade: ainda não conseguiram definir um programa alternativo. O governo Chávez, o mais avançado de todos, constrói seu projeto a quente, em numerosos enfrentamentos com a oligarquia e com a Casa Branca. Possivelmente o mesmo se dará com o governo Evo Morales. Como o Fórum Social, todos tateiam suas possibilidades em meio a uma conjuntura de imensa agressividade dos EUA. Mas contam a seu favor com o crescente sentimento antiimperial que contamina não apenas o FSM, mas crescentes contingentes populacionais ao sul do mundo.
A ponte que partiu
No caso venezuelano, as maiores ameaças à continuidade do processo não provêm agora de marchas ou boicotes oposicionistas. No domingo, esses setores promoveram uma passeata pelo centro da capital, com cerca de 30 mil participantes. Um número expressivo, mas nada comparável ao golpe de abril de 2002, ou ao locaute de dois meses ocorrido no final do mesmo ano. Com quatro canais de televisão e grande parte da mídia impressa na mão, além de dinheiro, muito dinheiro, e total liberdade de organização, a capacidade de mobilização oposicionista é bastante razoável.
O maior desafio do governo é representado pelo rompimento dos pilares de sustentação de um dos viadutos da via expressa de 40 quilômetros ligando o aeroporto internacional Simon Bolívar à capital. A região é pontuada por montanhas e vales e não existe rota alternativa em boas condições. O que há é uma velha estrada a serpentear a serra onde se localiza o bairro de Cátia, com curvas fechadas e passagens estreitas, que aumentaram a viagem dos usuais 30 minutos para um martírio que se estende para além de três horas.
O viaduto rompido condensa as tensões de um governo que venceu enfrentamentos políticos, erradicou o analfabetismo, colocou um médico em cada bairro, aumentou salários – o mínimo é de 180 dólares -, reduziu o desemprego e impulsiona o crescimento da economia para o recorde de 9,5% entre os emergentes, em 2005. Ao mesmo tempo, as administrações ligadas a Chávez mostram-se incompetentes para recolher regularmente o lixo das ruas, manter a iluminação pública funcionando a contento e cuidar de partes importantes da infra-estrutura de transportes. A situação é reconhecida por membros do governo. Tacitamente admitem que a chamada “revolução bolivariana” ainda não conseguiu democratizar e desobstruir importantes canais da gestão estatal responsáveis por áreas vitais.
Essas questões possivelmente terão influência nos debates deste Fórum. Não são apenas dezenas de milhares de ativistas que chegam a Caracas, mas é Caracas e a Venezuela que chegam ao Fórum, com seus avanços e impasses do dia a dia.
Estes movimentos contraditórios ainda não conformam “o extraordinário que se torna cotidiano”, na feliz definição de revolução feita por Che Guevara. Mas certamente aumentarão a dose de realismo nas quase duas mil atividades que tomarão conta desta cidade caribenha até o próximo fim de semana, fazendo deste o mais político dos Fóruns..
* Gilberto Maringoni é jornalista, chargista e colaborador da Agência Carta Maior.